Chega de assobiar para o lado

Proponho a criação de uma comissão encabeçada pelo presidente do Tribunal Constitucional e mais conselheiros, a que se juntassem outros juristas e cientistas políticos que, com base em critérios determinados pela AR, monitorizassem a actividade dos partidos.

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André Ventura, líder do Chega PÚBLICO

O recente manifesto assinado por vários historiadores sobre o livro de Riccardo Marchi intitulado “A Nova Direita Anti-Sistema. O Caso do Chega”, o qual, na opinião dos primeiros enferma de graves erros técnico-metodológicos, trouxe mais a descoberto uma monumental falha no nosso ordenamento jusconstitucional.

Falo na ausência de controlo, a partir do momento em que um partido é registado junto do Tribunal Constitucional (TC), da manutenção ou não do cumprimento dos requisitos que a Lei Fundamental e a Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22/8 lhe exige. Sabemos que a CRP, no seu art. 46.º, n.º 4, a propósito da liberdade de associação, proíbe a existência de “(…) associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista”. Questão muito disputada – poderá ficar para um próximo artigo – na doutrina, manifesto a minha total concordância com a opção do legislador constituinte e que, nas sete revisões constitucionais, nunca foi alterada. Na verdade, trata-se, segundo creio, de um limite de revisão material implícito (art. 288.º da CRP), dado que qualquer sistema político deve dotar-se dos instrumentos que impeçam a destruição dos seus traços fundamentais.

De “cláusulas pétreas” falam em especial os colegas brasileiros. O Estado de Direito democrático e social, a forma republicana de governo, são, de entre outros, o esteio essencial que Portugal decidiu dar-se a si mesmo no pós-25 de Abril e a não ser que haja uma profunda alteração nos quadros sociais, culturais e políticos, é assim que queremos viver, pelo que não vejo como haja qualquer conflito inultrapassável com outros direitos fundamentais, nomeadamente o da liberdade de expressão e associação.

Usamos sempre o princípio da concordância prática e ninguém duvidaria que o núcleo essencial do Estado de Direito ficaria irremediavelmente afectado por uma organização que perfilhasse a ideologia fascista ou racista. Trata-se, assim, não de uma norma que somente responde à experiência do Estado Novo, mas à qual se assinala um fim prospectivo: o futuro da democracia exige barreiras inexpugnáveis e a citadela por que tanta gente deu a vida justifica esta compressão conforme à CRP.

Bem sabemos que o controlo que o TC exerceu partidos como o Chega foi naturalmente aquele que a lei permite, o qual é demasiado formal. A análise da regularidade das assinaturas é feita por amostragem e as declarações de princípios, os programas e os estatutos dos partidos, logo que cumpram, na forma, a democraticidade interna e não digam ostensivamente que são fascistas ou racistas ou não o escrevam de modo descarado por outras palavras, são registados junto do TC que, note-se – e bem – não autoriza tecnicamente a constituição de partidos políticos, mas apenas acaba por operar uma espécie de simples “homologação formal”, nos termos da própria CRP. E é óbvio que os proponentes são inteligentes e escrevem o que sabem que devem.

A crítica não é, portanto, dirigida ao TC, mas à lei que não estabelece efectivos mecanismos de controlo material. É certo que o art. 18.º, n.º 1, al. a) da referida Lei Orgânica n.º 2/2003 permite que o MP requeira ao TC a extinção oficiosa de partidos que perfilhem tais ideologias. Que se saiba, mesmo com os casos do Partido Nacional Renovador e do Chega, nenhuma iniciativa foi tomada. E bem se compreende – sem uma densificação da Lei, o MP e o TC ficariam numa situação de grande debilidade decisória que, na prática, beneficiaria o infractor. Donde, era necessário que os deputados encontrassem forma de analisar os discursos públicos, as tomadas de posição, o que se diz no Parlamento e fora dele, aquilo que aparece como manifestações externas típicas de uma ideologia fascista ou racista (e não digam que isto são conceitos indeterminados, pois existem quilómetros de produção científica independente sobre a matéria). E que esse controlo se mantivesse enquanto o partido não fosse extinto, naturalmente para todos eles. Bem conheço os espinhos da matéria, pois, na prática, não é fácil legislar sobre este controlo material.

Todavia, não se trata de uma dificuldade inultrapassável. Proponho a criação de uma comissão encabeçada pelo presidente do TC e mais conselheiros, a que se juntassem outros juristas e cientistas políticos que, com base em critérios determinados pela AR, monitorizassem a actividade dos partidos apenas e tão-só naquilo que a CRP proíbe: que, na materialidade do acontecer, fossem defensores ou difusores directos ou indirectos, de forma ostensiva ou velada, das ideologias proscritas. Mais uma vez defendo que esta é a única forma de se manter o verdadeiro Estado de Direito, pelo que não vislumbro inconstitucionalidade material alguma se a AR legislasse neste sentido.

Análise de intervenções públicas em quaisquer fóruns, estudo dos documentos de todo o tipo (comunicados, jornais, etc.) produzidos pelos partidos, verificação das publicações nas redes sociais dos partidos e dos seus líderes (e apenas estes) de eventuais ideias fascistas ou racistas (a liberdade de expressão tem limites quando conflitua com a citada norma essencial da CRP). Aqui ficam algumas ideias para uma eventual proposta ou projecto de lei.

Já se disse que a matéria não é fácil e que seria cómodo deixar tudo na mesma, à boa maneira que não é só portuguesa. Mas repare-se que se continuarmos a assobiar para o lado, quando nos apercebermos, teremos um mero Estado de Direito de papel, formal. O Estado Novo e a Constituição Política de 1933 que o suportava também era formalmente democrática. O problema não está na forma, mas no conteúdo, como aliás em tudo na vida.

Que se crie uma comissão na AR, composta por deputados de todos os partidos com representação parlamentar e que se oiçam especialistas na matéria, de modo a que exista um projecto de lei que possa ser amplamente discutido. O que de todo se pode fazer, sob pena de quando acordarmos já não termos um regime político que cumpra os mínimos do legado do 25 de Abril, é continuar a fazer de conta que o elefante não está no centro da sala.

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