Riccardo Marchi e o grupo dos 67

Devo deixar claro que não adiro ao programa do Chega e que tenho dúvidas sobre as teses de Riccardo Marchi. Aquilo a que adiro é à defesa de um espaço público aberto, atravessado por debates vigorosos sobre os temas que interessam à nossa vida coletiva

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Riccardo Marchi, autor do livro " A Nova Direita Anti-Sistema O caso do Chega " Daniel Rocha

Riccardo Marchi escreveu um livro em que defende uma tese sobre o Chega, aduzindo argumentos em sua defesa (em defesa da tese, não do Chega, bem entendido). A tese, como todas, parte de pressupostos e defende conceções que não são neutras – designadamente, uma certa conceção de racismo ou não racismo, relacionada com a integração ou assimilação de minorias. Poder-se-á concordar ou não, sendo que discordar de alguns dos pressupostos, conceções ou argumentos, não implica deixar de reconhecer que se trata de contribuição para um debate que importa ter.

Debater a tese de Riccardo Marchi, no entanto, não é o que me leva a escrever este texto. O que aqui está em causa é o artigo assinado por 67 investigadores de nomeada (67, se os contei bem!), “Contra a higienização académica do racismo e do fascismo do Chega”, publicado no PÚBLICO de 11 de julho.

Causa estranheza, desde logo, que 67 vozes autorizadas se levantem no espaço público contra uma só, ainda mais quando esta última não é a de um responsável público a definir ou implementar uma política, mas tão só a de um investigador que escreveu um livro. Essa voz solitária nem mesmo poderia ter sido tido em conta pelo Tribunal Constitucional quando não encontrou, no programa do Chega, algo que pudesse determinar a aplicação do artigo 46.º, n.º 4, da Constituição, em cujos termos não são permitidas “organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista”. Se fosse esse o caso, até se compreenderia uma tal mobilização contra um só académico.

O que se revela mais preocupante, no entanto, não é a desproporcionalidade numérica da reação naquilo que aparenta ser uma contravenção às cerimónias necessárias a um debate frutuoso, mesmo que já não estritamente académico. De facto, os 67 investigadores não pretendem ser cerimoniosos ou intervir em espírito de debate. Pretendem “repudiar”, denunciar, mais do que debater.

O que sobretudo os move, se os entendi bem, é o facto de a RTP 2 ter tido a ousadia de ouvir Riccardo Marchi sobre a sua tese, permitindo-lhe desenvolver os seus argumentos “sem contraditório”.

Ora, se bem conheço as regras adotadas pelas redações, televisivas ou de imprensa escrita, a entrevista a autor de um livro publicado sobre um tema relevante não obriga a confrontá-lo, de imediato, com vozes que contradigam a respetiva tese ou argumentos. De resto, recordo-me bem de ver muitos dos 67 autores deste artigo a serem entrevistados nos media, também públicos, sobre obras publicadas ou sobre as ideias que desenvolvem enquanto académicos, tendo-lhes sido dada a liberdade de as expor sem imediato contraditório. E tal, apesar de se tratar de teses e argumentos muitas vezes polémicos, com pressupostos e conceções não partilhadas. Alguns deles desenvolveram mesmo teses e formularam argumentos enquanto responsáveis por programas da televisão pública!

Perante isto, e tendo também em conta a rispidez da linguagem usada, torna-se difícil supor que a intenção deste grupo de investigadores fosse a de sujeitar a tese de Riccardo Marchi a contraditório. Não faltariam, de resto, meios que lhes permitissem fazê-lo, tendo cada um deles acesso aos mais diversos media. Pelo contrário, a suspeita que fica é a de que os 67 investigadores pretendiam que a tese de Riccardo Marchi, nomeadamente a sua conceção de racismo ou não-racismo, fosse suprimida do espaço público, nem mesmo sendo apresentada. E isto, sim, é grave, num espaço público que se pretende plural.

Permita-se-me dizer, antes de terminar, que a motivação deste texto em nada tem que ver com uma qualquer adesão às teses de Riccardo Marchi ou, ainda menos, ao programa do Chega. Devo deixar claro que não adiro a este último e que tenho dúvidas sobre as primeiras. Aquilo a que adiro é à defesa de um espaço público aberto, atravessado por debates vigorosos sobre os temas que interessam à nossa vida coletiva. Um desses temas, precisamente, é o do racismo e a sua relação ou não relação com a promoção da integração. E é precisamente esse tema que fica por discutir quando, em vez de se debater, se opta pela vergastada coletiva de um só.

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