O exame do 12.º ano: quem, como, porquê?

Pergunto, como professor e educador: o projecto é acabar com a disciplina de Português? Está em gestação eclipsar, matar, a literatura portuguesa? Só encontro uma explicação para este exame: foi feito por professores que detestam cultura e desprezam o pensamento.

Há várias razões para este Exame Nacional de Português merecer o nosso repúdio. Os professores de Português que prezam a educação literária e não são traidores da memória, da tradição e da História deveriam exigir a sua anulação. Nem falo já sequer do peso atribuído a esta prova no acesso à Universidade; peso excessivo e não legitimado por um exame que fosse inteligente, cientificamente válido. Analisemos o exame.

Antes de o aluno o iniciar, uma indicação preciosa: “A prova inclui 5 itens, devidamente identificados no enunciado, cujas respostas contribuem obrigatoriamente para a classificação final [...].” Seguem-se os itens obrigatórios. Sobre os outros 10 itens (meu Deus, que linguagem!), “apenas oito contribuem para a classificação final”. Ou seja, de dez respostas pedidas, as oito melhores é que merecerão a melhor pontuação. No fundo, um convite a conceber este momento de acesso ao Ensino Superior como se de um exame de condução se tratasse.

Continuemos: do Grupo I, Parte A, constavam dois excertos, ambos de Eça: A Ilustre Casa de Ramires e Os Maias. É de espantar, a meu ver, a inserção de dois excertos de livros opcionais: escolas há em que a obra-prima de Eça, Os Maias, é a escolhida e outras haverá que preferiram o meta-romance protagonizado por Gonçalo Mendes Ramires. Se, na verdade, as perguntas não têm nada de especialmente difícil – bastaria que os alunos dominassem técnicas de análise metódica do texto literário –, o certo é que, na óptica do aluno, o facto de lhe aparecer no enunciado um excerto que não foi alvo de leitura, isso pode constituir (e constitui) senão um factor de surpresa e angústia, ao menos de estranheza e incómodo. Assim, este primeiríssimo exercício (das perguntas 1 à 3) é, em si mesmo, um erro de didáctica e de pedagogia. De didáctica, na origem, de pedagogia, no que daí se obtém. Para quem não leu nenhuma das obras, bastava saber aplicar a leitura metódica do texto literário àqueles excertos. Sucede, porém, que condicionados pela surpresa de um exercício com dois textos (um deles não leccionado), muitos dos nossos alunos não conseguem ‘ir por partes’ e identificar que frases, que imagens, que orações reenviam para aquilo que a pergunta solicita. Some-se ausência de prática de análise de texto e está tudo dito...

A pergunta 2): explicitar, segundo os textos-fonte, até que ponto há neles “uma visão crítica sobre Portugal e os portugueses”. Notas de rodapé ajudavam à compreensão de alguns verbos e expressões: “macilento”, “Anais” (!), “avoengo”, além de um dito latino sobre a proscratinação como traço português. Por aqui se vê também o ponto a que chegou o ensino da língua (mas saberão os alunos o que era o Ministério da Fazenda? Ou por que razão o lexema “ideia” aparece grafado com maiúscula? Ter-lhes-á sido ensinado que o passeio de Carlos e Ega pelo Rossio constitui uma catábase, uma autêntica descida aos infernos, prolongando-se depois na revisitação ao Ramalhete? Mas disto os fazedores do exame não têm qualquer noção, estou certo, e nem sequer compreendem a pertinência de se colocarem perguntas a este respeito, ou a respeito da Ilustre Casa de Ramires como obra de inquirição dos limites do romance enquanto género).

Na questão 3) o exame ganhava asas: se tivermos na memória a frase final do excerto retirado da obra de 1900, “Nós estamos imundamente morrendo do mal de não ser Portugueses” (diz Lúcio Castanheiro), disso mesmo se trata – o exercício 3) – quer no seu primarismo, quer na sua pretensiosa cientificidade. Este exame à americana é um sinal de morte do que significa avaliar-se o idioma em que escreveram Eça, Pessoa e Vieira.

Na verdade, este tipo de exercícios com alíneas e grelhas, quadros, exercícios de correspondência, escolhas múltiplas, completamento de espaços em branco, tudo isso serve apenas para dar à disciplina de português a tão ansiada ‘cientificidade’ que estes provincianos-tecnicistas assanhadamente nos querem impingir. Mas quando enchem a boca com o discurso da excelência, estes examinadores reduzem a língua de Camões a um patamar de indigência – deles, que não do épico –, acabando por matar a scientia inerente à linguagem literária. A cientificidade que se pede numa disciplina desta natureza prende-se, senhores examinadores, com a inquirição dos sentidos do código literário, seja ele o relativo à estética realista queirosiana, seja ele o da ficção heteronímica; a avaliação das competências linguística e literária deve decorrer da lógica textocêntrica das aulas de Português, ou não leram Vítor Aguiar e Silva?

Na Parte B, uma ode de Ricardo Reis (“Sofro, Lídia, do medo do destino”), o retrato fiel da incompetência de quem gizou este exame. Proposta: “Apesar da referência a ‘Meu coração’ (v.4) que remete para o campo das emoções, Ricardo Reis assume uma atitude racional.” “Atitude racional”? E pedia-se aos alunos que explicassem em que “consiste essa atitude racional”, indicando o motivo. Mas que atitude racional há no sujeito que aí se figura? O sujeito não diz sofrer “do medo do destino”? Não é o medo uma energia negativa, mortal, irracional, que o faz sentir-se aterrado? Que racionalidade há na expressão do medo de existir? E saberão os alunos que não se trata aqui do sentido mais comum do verbo “aterrar”? Veremos as respostas... Não há, senhores, “qualquer atitude racional” nesta ode de Reis. Há sim um estilo calculado, decalcado do modelo horaciano, e uma única saída: não viver. Pânico de existir, de ser, de se renovar a energia psíquica, este é um poema da morte da alma, não fosse Reis o heterónimo do ressentimento e cálculo, como sublinha Jacinto do Prado Coelho. Quanto à tarefa dedicada a Vieira, que dizer? Redigir uma “breve reflexão” é convite a que nada se diga de pertinente sobre o jesuíta.

Completar afirmações colocando as figuras de estilo correctas (exercício 6), de modo a identificar “características da linguagem” deste heterónimo e escolher, de entre três hipóteses, se a linguagem de Reis é musical porque na ode há “decassilabos graves conjugados com tetrassílabos agudos”, ou se essa musicalidade deriva da “existência de elisões na escansão de todos os versos do poema”, eis a suprema perfídia. É pernóstico. Saberão os pernósticos fazedores deste nefando exame as regras do Tratado de Versificação Portuguesa de Amorim de Carvalho (Almedina, Coimbra, 1991)? É que é essa a única explicação para semelhante exercício. Quanto ao Grupo II, mais do mesmo: como somos cientistas e ensinamos para a excelência, eis um texto de Carl Sagan. Saga gramatical: escolher as alíneas correctas, adivinhar, fazer ao calhas! No exercício 7 do G.II, a kafkiana lição etimológica (só visto, senhores!): saber que vocábulos, para além de “arenoso” e “arear”, derivavam de “arena”. Vejam e pasmem.

Pergunto, como professor e educador: o projecto é acabar com a disciplina de Português? Está em gestação eclipsar, matar, a literatura portuguesa? Só encontro uma explicação para este exame: foi feito por professores que detestam cultura e desprezam o pensamento. Sobre o G.III, basta pensar que educação estética têm os alunos ao longo de 12 anos para tecerem “um comentário crítico” sobre um cartoon de Agim Sula “[...] utilizando um discurso valorativo”. Gostava de ver estes fazedores do exame a fazerem este exame... A APP, que dirá? E o ministro da tutela? Este exame deveria ser simplesmente anulado. É uma questão de bom senso e seria um sinal poderoso dado aos técnicos que hoje dominam o JNE.

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