Historiadores e museólogos contestam escolha de Rita Rato para direcção do Museu do Aljube

Ex-deputada do PCP não terá um currículo adequado ao cargo nem cumpre os requisitos do perfil pedido pela própria EGEAC, argumentam. Júri do processo de selecção não incluiu qualquer membro independente.

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RUI GAUDÊNCIO

Está a criar polémica a selecção de Rita Rato, ex-deputada do Partido Comunista Português (PCP), para directora do Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, um equipamento da Câmara Municipal de Lisboa criado em 2015 numa antiga prisão da polícia política PIDE.

A escolha foi anunciada na terça-feira pela Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC), que gere os equipamentos culturais da Câmara de Lisboa, num comunicado que adianta que Rita Rato se destacou entre várias candidaturas “pelo projecto apresentado e pelo desempenho nas entrevistas realizadas com o júri”. Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa, a militante do PCP substituirá o historiador Luís Farinha, que se reformou em Abril.

A desadequação do currículo de Rita Rato aos principais requisitos solicitados pela EGEAC no processo de recrutamento e o eventual peso da sua militância no PCP na decisão final são alguns dos argumentos invocados pelos especialistas ouvidos pelo PÚBLICO e que também têm sido discutidos nas redes sociais.

Para a historiadora Irene Pimentel, com várias obras publicadas sobre a PIDE, o que se sabe do currículo da ex-deputada não se adequa ao que era pedido para a direcção do Museu do Aljube: “Que eu saiba, não tem nenhuma experiência na área da museologia, não é historiadora, nem de história contemporânea nem de história cultural. Não é curadora, não é museóloga.”

Tal como já tinha escrito na sua página de Facebook, Irene Pimentel diz também ao PÚBLICO conhecer vários candidatos que estariam muito mais de acordo com o perfil divulgado pela EGEAC: “São excelentes historiadores de história contemporânea com experiência em museologia.”

No referido aviso de recrutamento, a EGEAC colocava em primeiro lugar três pontos mais específicos: “Formação superior adequada à função (preferencialmente na área de história política e cultural contemporânea); Experiência em funções similares (preferencialmente na área dos museus); Experiência em programação e produção de exposições”.

Irene Pimentel pergunta ainda, no Facebook, por que razão não há concurso público para museus camarários — “a escolha é por camaradagem?” Ao PÚBLICO, a historiadora assume entender que a filiação política de Rita Rato “é capaz de ter tido um papel importante”. “Há aspectos da geringonça que ainda se mantêm. E eu até era favor da geringonça, mas falta de transparência em concurso é que jamais. Esta pessoa não parece ter minimamente os pontos principais do perfil que eles próprios conotaram. Além disso, houve presos de vários partidos políticos [nas prisões da PIDE] e é preciso ter muito cuidado. Há o perigo de o [PCP] hegemonizar o património dessa memória. Sempre levantei muito essa questão.”

Antigo director estava no júri

Ao que o PÚBLICO apurou, a EGEAC (que não está obrigada a fazer concursos públicos) recebeu cerca de 60 candidaturas à direcção do Museu do Aljube. Seguiram-se duas fases de selecção que passaram por entrevistas aos concorrentes. O júri foi composto por Luís Farinha, o anterior director, e mais três chefias da EGEAC: Joana Gomes Cardoso (presidente), Manuel Bairrão Oleiro (assessor para a área do património e dos museus) e Joaquim René (director de recursos humanos).

Segundo Joana Gomes Cardoso, “o processo de recrutamento contou com a participação activa do anterior director do Museu do Aljube” porque se “pretende uma continuidade do projecto desenvolvido nos últimos cinco anos”, entendendo-se embora necessário reforçar a área da comunicação e captar novos públicos. Em resposta enviada ao PÚBLICO por email, a presidente da EGEAC esclareceu que “a candidata seleccionada defendeu uma visão integrada para o museu, incluindo uma proposta de programação relacionada com temáticas de liberdades contemporâneas, como as questões de género ou a inclusão social”, destacando-se nessa abordagem na segunda ronda de entrevistas. Quanta à falta de currículo académico da nova directora, Joana Gomes Cardoso desvaloriza-a: “O Museu do Aljube conta com uma equipa com sólida formação académica e científica que continuará a apoiar a nova direcção, assim como o Conselho Consultivo do Museu, do qual fará parte Luís Farinha.” Refutando qualquer sugestão de esta ter sido uma escolha política, afirma ainda que a EGEAC “é uma instituição plural onde convivem as mais diversas correntes políticas”.

Contactado pelo PÚBLICO, o presidente do Conselho Internacional de Museus (ICOM Europa), Luís Raposo, diz não conhecer os outros candidatos, nem, em pormenor, o currículo de Rita Rato. Não acha mal “que os directores de museu tenham alguma notoriedade pública, como a ex-deputada do PCP, e não sejam apenas tecnocratas cinzentos que ninguém sabe que são”, mas admite que “é uma escolha controversa”, ainda que não considere obrigatória uma formação específica em museologia. O mais importante, defende, é o conhecimento da colecção e a capacidade de a fazer falar.

Já em relação ao processo, Raposo diz que lhe “parece mal que os júris de selecção de directores de museus públicos, ou de empresas e fundações com dinheiros públicos, sejam constituídos apenas ou sequer maioritariamente por ‘gente da casa'”. “Devem existir e ser maioritários membros independentes”, acrescenta.

O Museu do Aljube foi inaugurado em 2015 MARGARIDA BASTO/ARQUIVO
Um aspecto da exposição A Voz das Vítimas PEDRO CUNHA/ARQUIVO
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O Museu do Aljube foi inaugurado em 2015 MARGARIDA BASTO/ARQUIVO

Também o historiador António Araújo, no seu blogue Malomil, considerou que Rita Rato não tem competência para dirigir o Museu do Aljube: “Nomeá-la é um insulto grave aos historiadores e investigadores portugueses, a gente competente e independente, aos cidadãos desta Lisboa, aos resistentes e às vítimas pela liberdade, a todas elas, sem excepção, aos que lutaram e sofreram no Tarrafal, em Auschwitz, no gulag, na Coreia do Norte, em Hong-Kong, em muitos lugares.” O também conselheiro político do Presidente da República aludiu ainda a uma célebre entrevista que Rita Rato deu em 2009 ao Correio da Manhã, e em que a jovem deputada recém-chegada à Assembleia da República mostrava desconhecer a existência dos campos de trabalho forçados da antiga URSS, numa resposta alinhada com o discurso comunista mais ortodoxo.

Porquê Rita Rato? — continuava António Araújo, que publicou recentemente um livro sobre os últimos dias da PIDE. “Tem formação académica ou outra em História? Nop. Tem obra publicada ou investigação feita nesse domínio? Nada, absolutamente nada. Tem alguma experiência curricular para o cargo? Niet, nenhuma, zero.”

Numa carta que será publicada na edição impressa de quinta-feira do PÚBLICO, o historiador de arte Miguel Soromenho vai ainda mais longe, escrevendo que “a escolha da ex-deputada Rita Rato para a direcção do Museu do Aljube é uma vergonha”. O também museólogo diz que a EGEAC ignorou o perfil que exigiu aos candidatos, acrescentando que o júri “embarcou diligentemente neste simulacro concursal”. “Dos nove requisitos exigidos, à deputada Rita Rato faltam pelo menos três, e logo aqueles, cruciais, relativos à proficiência técnica exigida à coordenação superior de um equipamento desta natureza.”

O PÚBLICO não conseguiu contactar Rita Rato, que tomará posse como directora apenas em Agosto, nem obter um comentário do director cessante do Museu do Aljube, Luís Farinha.

Notícia alterada a 9 de Julho: esclarece que Luís Farinha foi contactado mas declinou comentar

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