Mudar o que está bem, para quê?

Impressiona, desde logo, a originalidade de ser o maior partido da oposição a sugerir um recuo dessa natureza.

Em política não é, infelizmente, incomum, que nos deparemos com propostas desprovidas de razão de ser, fundamento ou justificação. Não é incomum, mas é prejudicial, porque degrada a imagem da política, colocando-a ao nível da irracionalidade do debate desportivo, em que tudo vale para defender as cores clubísticas, mesmo quando é evidente, à luz do senso comum, que a razão não está do lado de quem argumenta.

O caso mais recente dessa atitude pode ser encontrado na proposta do meu partido de reduzir o número de debates com o primeiro-ministro no Parlamento.

Desde a reforma do Regimento da Assembleia da República, ocorrida em 2007, esses debates têm um formato quinzenal (aos quais acrescem outros debates específicos). A ideia do PSD é que a presença do chefe do Governo passe a ser obrigatória, apenas, em oito debates: quatro para responder a perguntas dos deputados, o debate orçamental, o debate do Estado da Nação e dois debates sobre questões europeias (que, agora, são quatro).

Impressiona, desde logo, a originalidade de ser o maior partido da oposição a sugerir um recuo dessa natureza, para já não falar da falta de oportunidade política, eximindo o primeiro-ministro de responder com regularidade perante os deputados, num momento em que o país vive uma séria crise de saúde pública, a que se associará, inevitavelmente, uma grave crise económica.

 Mas, além disso, há observações de fundo que devem ser dirigidas à ideia, começando por recordar que foi pela mão do PSD que os debates quinzenais foram instituídos, precisamente com o intuito de reforçar o papel fiscalizador da Assembleia da República. E a razão foi simples: o primeiro-ministro não é, apenas, um primus inter pares, mas o responsável máximo pela actuação do Governo, pelo que nada pode substituir o escrutínio baseado numa frequente presença sua no Parlamento (evidentemente dentro dos limites do razoável).

Por outro lado, e goste-se ou não, em democracia o Parlamento é sempre o centro do debate político. E essa centralidade tem de ser reafirmada, sobretudo quando vivemos num mundo em que muitos, voluntária ou involuntariamente, abrem as portas à ideia de que é na informalidade das redes sociais ou da presença na comunicação social que se deve debater o importante, remetendo o Parlamento para uma espécie de ritualismo litúrgico e formalista. E não é seguramente com a diminuição da presença do primeiro-ministro que tal tendência será combatida.

Ninguém pode negar que as funções de primeiro-ministro são exigentes e trabalhosas. Mas isso não pode servir como justificação para a redução defendida, pela singela razão de que as suas presenças no Parlamento não são um favor ou um frete, mas uma tarefa que está no âmago dessas funções - prestar contas da acção do Governo que dirige, no âmbito da sua responsabilidade política perante o Parlamento. Daí que, como facilmente se compreende, é o próprio conceito de responsabilidade política, central no nosso sistema de governo, que é fortemente afectado por esta proposta.

Em democracias consolidadas, como o Reino Unido, a Dinamarca ou a Irlanda, a chamada question time tem uma importância determinante e leva o primeiro-ministro a comparecer no Parlamento, não quinzenal ou mensalmente, mas todas as semanas. Noutras, como a Suécia, a sua presença ocorre de três em três semanas. Entre nós, aponta-se como um avanço uma solução que representa, até, um retrocesso face aos tempos em que o debate com o primeiro-ministro se realizava todos os meses…

Tivéssemos nós, hoje, um primeiro-ministro que se preocupasse com a qualidade da nossa democracia e tal proposta seria liminarmente rejeitada. Mas não. Parece que o primeiro-ministro não gosta de ir com tanta frequência ao Parlamento. É, porventura, um incómodo, uma maçada, um constrangimento. E daí que o Partido Socialista se tenha apressado a deixar cair na comunicação social o apoio à ideia. Esquecendo que, quando se trata de temas tão sérios, as nossas posições não devem depender do facto de estarmos no Governo ou na oposição. Esquecendo que um dia estarão na oposição e serão prejudicados com a mudança que agora apoiam. E esquecendo, já agora, que quando tal suceder o seu líder não será o actual primeiro-ministro, pelo que a este é indiferente a posição em que venha a encontrar-se o seu sucessor na liderança do partido.

De entre as profundas mudanças no funcionamento do Parlamento introduzidas em 2007, uma há que, tanto no universo da política, quanto fora dele, tem sido vista como uma significativa melhoria, pela dimensão acrescida que trouxe ao escrutínio político do Governo, mas também à sempre necessária vivacidade do trabalho parlamentar – trata-se, precisamente, do modelo dos debates quinzenais. Para quê, então, mudar o que está bem? 

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