No sul dos Estados Unidos, teme-se a repetição do horror nos hospitais italianos

Na quinta-feira registaram-se mais de 50 mil casos pelo segundo dia consecutivo. Números mostram um crescimento preocupante desde a reabertura de lojas, restaurantes e empresas nos estados norte-americanos.

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Miami Beach, na Florida, um dos estados onde a covid-19 está a crescer mais LUSA/CRISTOBAL HERRERA

O cenário que chocou a Europa em Março, quando os médicos italianos se viram forçados a dar prioridade aos pacientes que tinham mais hipóteses de sobreviver à covid-19, está hoje no horizonte de alguns estados norte-americanos do sul do país, como o Arizona, onde o número de casos do novo coronavírus explodiu nos últimos dias.

E a situação pode agravar-se ainda mais nas próximas semanas, depois de uma reabertura da economia sem que o uso de máscaras fosse obrigatório em alguns estados – neste sábado, 4 de Julho, o Dia da Independência vai ser comemorado com espectáculos de fogo-de-artifício e aviões de combate a sobrevoarem os céus da capital, por entre gigantescos protestos um pouco por todo o país.

As escolhas de vida e de morte por causa da pandemia não são desconhecidas nos Estados Unidos, onde a pressão sobre os hospitais de Nova Iorque, em Março e Abril, deu origem a notícias sobre pacientes a morrer nas salas de espera e morgues improvisadas em camiões parados em zonas residenciais.

Mas, até Junho, os estados do sul tinham sido poupados às imagens que saíram de Nova Iorque e Nova Jérsia, situados na costa do Atlântico e mais perto da fronteira com o Canadá do que da fronteira com o México.

100 mil por dia?

Esse cenário de confiança e aparente controlo alterou-se nos últimos dias, o que levou o imunologista Anthony Fauci – um dos mais conhecidos cientistas da equipa da Casa Branca responsável pelo combate à pandemia – a alertar para o agravamento da situação.

“Penso que é evidente que não estamos a ir na direcção certa”, disse Fauci numa entrevista a uma das mais conceituadas revistas médicas, a Journal of the American Medical Association.

“Temos de perceber que se não cumprirmos as orientações à medida que vamos tentando reabrir – e não me refiro às autoridades, mas sim aos cidadãos, às pessoas que andam nas ruas –, vamos ter sérias dificuldades”, disse o cientista. No início da semana, Fauci admitiu que o país pode vir a registar mais de 100 mil casos por dia.

Uma das críticas feitas ao Presidente norte-americano, Donald Trump, é a sua insistência em não recomendar de forma veemente e consistente o uso de máscaras pela população, nem insistir no distanciamento entre as pessoas. Pelo contrário, deu voz aos protestos contra a imposição de medidas de isolamento, apelando à “libertação” de estados governados por políticos do Partido Democrata, e no dia 23 de Junho esteve num comício no Arizona, num recinto fechado, onde falou para três mil jovens, a maioria sem máscara.

Trump está a ser acusado de não contribuir para o combate à pandemia pelo exemplo, ao manter a sua decisão de assistir a um espectáculo de fogo-de-artifício junto ao Monte Rushmore, no Dacota do Sul, esta sexta-feira, e de insistir na realização de uma parada militar em Washington, no sábado, para as comemorações do 4 de Julho.

Casos sobem 85%

Duas semanas depois de os estados terem começado a sair da quarentena imposta para travar o aumento de casos, os números são cada vez mais preocupantes e vários estados recuaram nos seus planos de reabertura.

Na quinta-feira, foram registados pela primeira vez mais de 55 mil novos casos em 24 horas, um dia depois do registo – também pela primeira vez – de mais de 50 mil casos. E pelo menos oito estados anunciaram novos máximos diários.

De acordo com o New York Times, nas últimas duas semanas houve um aumento de 85% no número de casos diários, em comparação com o momento em que os estados começaram a acelerar a reabertura de lojas, restaurantes e empresas.

O Arizona, localizado entre a Califórnia e o Texas e paredes meias com o estado mexicano de Sonora, é agora um dos maiores focos do vírus, com quase 88 mil casos positivos e 1765 mortes – é o estado com mais casos por 100 mil habitantes nos últimos sete dias (39). 

Esse aumento levou as autoridades mexicanas a fazerem um pedido com algo de irónico. Temendo uma entrada acima do normal de cidadãos norte-americanos no México, por ocasião das comemorações do 4 de Julho nos Estados Unidos, o ministro da Saúde de Sonora pediu ao Governo mexicano que reforce o controlo nas fronteiras sobre o pessoal não essencial, como turistas ou descendentes de mexicanos que queiram visitar as suas famílias.

Esta semana, o governador do Arizona, o republicano Doug Ducey, apelou pela primeira vez de forma directa ao uso de máscaras pela população, ao mesmo tempo que anunciou um recuo na reabertura de bares, restaurantes e ginásios.

Há duas semanas, quando o estado entrava numa nova fase do esperado regresso à normalidade, Ducey ainda se defendia dos críticos com um discurso em que salientava mais as explicações de quem não pode usar máscara do que os apelos a quem pode usá-las. “Há pessoas que não podem usar máscaras, seja por falta de ar ou por serem asmáticas”, disse o governador do Arizona a 13 de Junho, quando foi questionado sobre os motivos que o levavam a reabrir a economia sem impor o uso de máscaras pela população. 

Esta sexta-feira, o homem que chefiou o Departamento de Saúde do Arizona durante seis anos sob a liderança da ex-governadora Jan Brewer, também do Partido Republicano, disse que teme o pior nas próximas semanas.

“Olhem para o que aconteceu na Lombardia, em Itália, e em Nova Iorque. É isso que está prestes a acontecer aqui”, disse Will Humble ao Washington Post. “As pessoas vão morrer porque o nosso sistema está sobrecarregado e é importante que outros estados aprendam com os nossos erros. Somos um exemplo daquilo que não deve ser feito.”

Ao lado do Arizona, tanto na Califórnia como no Texas, foram registados novos recordes na quinta-feira, o que também aconteceu no Alasca, Arkansas, Florida, Georgia, Montana, Carolina do Sul e Tennessee. De todos, é a Florida que lida com a situação mais preocupante, com mais de dez mil casos na quinta-feira – mais quatro mil do que um dia antes.

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