Interrogações em tempos de melancolia

Sejamos claros: algo não correu bem e há que assumir a realidade e corrigi-la. Primeiro, algum discurso mediático clamando que bastaria isolar idosos e libertar os mais jovens para a Economia, ignorando como se formam cadeias de contágio. Depois, incoerência oficial, na controvérsia sobre o uso de máscaras, e excessiva exposição mediática de responsáveis reduzindo, pelo cansaço de quem ouvia, o impacto do discurso. É dos livros!

Início do Verão, temperatura amena, brisa forte que desperta os sentidos. Na televisão, a transmissão pelo Mezzo da 6.ª Sinfonia de Tchaikovsky – Patética – tocada num moderníssimo auditório em Moscovo no contexto de Fête de la Musique, num 21 de Junho pré-covid-19, tempo de auditórios cheios, sem máscaras e sem medo.

O longo e magnífico primeiro andamento é inesquecível: grito de uma alma atormentada, tristeza profunda, desespero, seguido de revolta, como um desafio à renovação, depois um assomo de entusiasmo, como se libertação tivesse acontecido, para depressa retornar à inquietação primordial. Interpelação dolorosa que só a música transmite na sua harmonia e que não é apaziguadora. Lewis Thomas, biologista, filósofo e cientista reconhecido escreveu num livro memorável que a Música produziria uma sincronização (fine tunnning) dos neurónios, um fenómeno biológico que seria a base da cascata de emoções e da exaltação do pensamento. E concluía, sem Música, nada fará sentido (without it nothing makes sense)!

Imagem para o nosso tempo pandémico, triste, mas premonitório, de desafio à ortodoxia vigente e hábitos estabelecidos e de abertura para a Esperança num novo futuro? Para melhor ou para pior? Ou o eterno recomeço, como no tema da sinfonia, de frustração pela incapacidade de mudança numa sociedade ameaçada.

Sentir a Música será um privilégio da espécie? Billy, o nosso épagnole-breton de alma caçadora, está deitado ao pé de mim quieto, como que hipnotizado! Que se passará nos seus circuitos neuronais?

O título desta crónica traduzirá as dúvidas e a inquietação num tempo de incerteza, após ilusão de vitória, cuja exaltação serviu o tempo político, mas evidenciou a nossa intrínseca dificuldade na persistência e no rigor – to run the race until the end.

Porque a luta contra esta pandemia requer coerência na acção, determinação sem desfalecimento, organização hierarquizada e mobilização dos cidadãos num combate persistente e duradouro.

No último artigo invoquei a tirania dos factos na Ciência mas também na Política, e talvez comece a ser o momento de se reflectir sobre o passado recente, para daí se extraírem lições e prevenir erros ou omissões.

No início do ano, quando a realidade chinesa começou a ser conhecida, hesitámos na apreciação do risco – o vírus não nos atingiria, longo caminho da China ao extremo ocidental da Europa –, o nosso estado de preparação no serviço de saúde era deficitário, da falta de equipamentos à organização da intervenção – incluíamos o grupo de países europeus com as mais baixas percentagem de camas de unidades de cuidados intensivos e não só falta de ventiladores – e não fomos expeditos na preparação e mobilização precoce e estruturada de recursos e capacidades disponíveis na Sociedade. Por isso, nas fases iniciais não testámos em grande escala, como, por exemplo, os alemães fizeram. Todos os outros países, que a princípio restringiram o seu uso, rapidamente perceberam que tinham que o fazer.

Mas, em abono da verdade, reconheça-se, ultrapassámos o primeiro cabo das tormentas. Na Saúde os resultados globais foram muito bons e situamo-nos no grupo dos países europeus com mais baixa prevalência e mortalidade [1], como se comprova no gráfico da figura 1 adaptado a partir de dados oficiais da OMS.

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Fig. 1: Mortalidade e Prevalência na UE

Houve coragem na decisão política com a promulgação do estado de emergência, que foi o turning point. Prevaleceu a dedicação e competência dos profissionais de Saúde e foi exemplar o civismo e espírito de sacrifício dos portugueses.

Mobilizou-se a sociedade e não foi só pelo medo; creio que houve percepção global da necessidade de sacrifícios e a sociedade correspondeu. Como sempre, nas situações limite agigantámo-nos, trepámos ao cume da montanha e, como é idiossincrático, enchemo-nos de júbilo e orgulho, pelos encómios que vinham de fora – milagre português, suecos do sul, quando os suecos ainda pareciam ser exemplo, etc. –, julgámo-nos vencedores duma guerra, quando a primeira batalha ainda nos consumia... e afrouxámos a guarda.

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O mural que Vhils esculpiu no Porto em tributo aos profissionais de saúde: em Portugal nem tudo está bem no combate à pandemia EPA/JOSE COELHO

Resiliência foi o conceito então invocado, que não é só determinação e coragem, combina a resistência à adversidade com a adaptação inteligente. E acho que para o período pós-confinamento não nos habilitámos com a informação factual indispensável a uma adaptação inteligente.

Vários aspectos merecem reflexão.

1. Houve mapeamento tão completo quanto viável da distribuição da pandemia e do seu famoso R0?

Obviamente não era exequível testar dez milhões. Mas deveria ter havido um programa estruturado de testes aleatórios e nos sectores mais vulneráveis – como nas sondagens de opinião – a nível regional que orientasse a política e o ritmo de desconfinamento. E deveria ter havido atenção particular a realidades que noutros países se soube terem tido impacto: comunidades de migrantes, alojados em hostels, vulgo pensões, sem condições e sem uma política activa de despistagem e os grupos de trabalhadores precários de outras nacionalidades que vêm preenchendo lacunas no nosso sistema laboral.

2. A mobilização das populações foi a adequada para o desconfinamento? Creio que houve lacunas graves. No dia em que se anunciava o fim do estado de emergência, deparei na deslocação ao hospital com gente passeando, sem cuidados de afastamento pessoal, sem protecção e ignorando prudência. Ontem, o dia mais longo, jantámos num restaurante conhecido da beira-rio, felizmente com excelente ocupação, cumprimento rigoroso das regras e esperança na retoma. No Terreiro do Paço uma pequena multidão, sobretudo de gente jovem, no total desrespeito pelas normas de conduta recomendadas. E não vi nenhuma intervenção dissuasora de autoridade pública. Numa praia da linha houve mais uma festa com mil participantes, a Polícia recebeu múltiplas denúncias de ajuntamentos em todo o país que depois se desmobilizaram, mas com o contágio já potencialmente feito. Odiáxere foi exemplo; para já, o Algarve, além dos problemas de saúde resultantes, ficou com a imagem ameaçada de destino seguro.

Como se informalmente quiséssemos combinar as vantagens de duas políticas contrárias: por um lado, a de confinamento e travagem da Economia, por outro, a tentação de repor a estratégia de imunidade de grupo, tão contestada no Reino Unido e agora na Suécia, com o seu cortejo de maior mortalidade e complicações.

Sejamos claros: algo não correu bem e há que assumir a realidade e corrigi-la. Primeiro, algum discurso mediático clamando que bastaria isolar idosos e libertar os mais jovens para a Economia, ignorando como se formam cadeias de contágio. Depois, incoerência oficial, na controvérsia sobre o uso de máscaras, e excessiva exposição mediática de responsáveis reduzindo, pelo cansaço de quem ouvia, o impacto do discurso. É dos livros!

Faltou um golpe de asa para uma abordagem inovadora e motivadora. E falhou o exemplo de contenção em celebrações públicas nacionais e partidárias que não deviam ter acontecido! Já pensou, caro leitor, quão diferente teria sido a força e o impacto de um exemplo de sobriedade e contenção se em 25/Abril e 1/Maio a opção tivesse sido por uma cerimónia contida, como aliás se fez no Dia de Portugal? Como a dignidade do acto, o significado das datas e a coerência entre discurso e acção teriam saído reforçadas? Não se perceber esta realidade é querer tapar o sol com a peneira!

Este não é ainda o tempo da rua, por muito legítimas que sejam indignação e razão para protestos! Nem para festas, partidário-culturais, seja qual for o eufemismo. Depois, como esperar que se entendam os apelos ao cumprimento das regras de espaçamento social, de contenção no convívio no Verão quente que se anuncia?

Não perceber esta realidade é escancarar a defesa à investida da pandemia.

3. A realidade é dura mas indesmentível, bem ilustrada no gráfico da Figura 2 enviado por JAS, engenheiro de profissão e matemático por devoção, que com base nos dados oficiais nos vem esclarecendo com a sua análise crítica [2]. É notória a discrepância da nossa evolução face a outros países. São os factos que se impõem ao discurso oficial de optimismo e de celebração.

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Fig. 2: Evolução de novos casos por milhão de habitantes

Se não invertermos esta tendência não seremos porto seguro para uma Europa que não abdicou de desconfiança e das suas rivalidades tradicionais e tem acesso aos factos. E não servimos nem a recuperação da Economia nem a Saúde dos portugueses.

Devo a estes amigos e outros, conhecidos pelo seu esforço e empenhamento na clarificação da situação pandémica, uma percepção mais clara da realidade que as maçadoras conferências de imprensa oficiais não transmitem. A necessidade de transparência e clareza na informação é indispensável.

Terão já sido facultados os dados epidemiológicos solicitados pela Associação das Escolas Médicas nacionais? Seria um bom exercício de accountability pública.

Capacidade para análise crítica, clareza de propósito, persistência e planeamento são agora as armas para mobilizar a confiança e o empenhamento de todos, porque este é ainda o tempo da cidadania responsável.

Não estamos no cume da montanha, mas não temos que mergulhar no abismo da dúvida, da negação das nossas capacidades; apenas precisamos fazer bem o que é preciso ser bem feito!

Uma questão final – tempo de pausa ou etapa para mudança desejável? Recordo a invocação de Séneca a quem não conhece a rota nenhum vento parece favorável. Na Saúde, como na Educação, na estrutura da Economia e no combate às desigualdades e assimetrias haverá uma oportunidade de progresso, se assim soubermos e quisermos.

As circunstâncias são excepcionais. Por isso, todas as contribuições, nomeadamente fora do establishment dirigente, poderão ser relevantes. Recordo uma exposição há anos em Londres sobre Churchill and his Scientists; perante desafios extraordinários mobilizaram-se vontade e inteligência fora do circuito do Poder, e essa coragem política teve impacto notável.

Em muitos países que nos são próximos desencadeou-se a mobilização da inteligência e da competência para abrir novas perspectivas e novas possibilidades, alargando o horizonte à decisão política. Como nunca comprei o mito do Salvador providencial – a experiência é conhecida! – e apoiando o recurso a personalidades externas e prestigiadas, não percebo como é que o Governo não tornou pública a composição do grupo, que necessariamente teve que ser constituído, pois ninguém sozinho conseguirá ter a visão panorâmica que o desafio actual comporta. Seria também um exercício de accountability e responsabilidade pública dar a conhecer a sua composição. Demonstraria cabalmente que se assimilaram lições do passado: mais do que ortodoxia e fidelidades partidárias, é na diversidade de competências e na discussão aberta e criativa que surge inovação e progresso.

Esse é o debate necessário, no Parlamento e na Sociedade, nas Profissões e na Academia, nas Associações empresariais e do trabalho, sustentáculo de Pensamento e impulso para Inovação.

É que há mais mundo para além das contas certas, da preservação do Poder e da ocupação partidária do Estado!

Referências

[1] Silva Santos, A: Relatório do coronavírus (baseado nas fontes oficiais).
[2] Sousa, JA: Relatório do Covid-19 n.º 60 (baseado nas fontes oficiais)

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