A política trata-nos da saúde

O bem hoje mais precioso para uma reactivação económica sustentável é ser “covid-free”. Portugal continental mais parece “covid-full”.

Estranheza, receio, perplexidade, indiferença são as quatro fases do confronto do cidadão comum com o aumento desproporcional e persistente de novos infectados na região de Lisboa e Vale do Tejo.

Na primeira semana era a estranheza. Estávamos na segunda quinzena de Maio, em plena segunda fase de desconfinamento, e as pessoas iam dando passos cautelosos na retoma do seu saudoso quotidiano, quando se começaram a aperceber de um elevado número de novos infectados com uma acentuadíssima prevalência na Grande Lisboa: à volta dos 200, às vezes mais. Todos os dias se esperava ansiosamente pelo novo boletim da DGS e a cada anúncio dos infectados das últimas 24 horas seguia-se a frustração de ainda não ser desta vez que se vislumbrava uma tendência de descida. As explicações eram titubeantes, mas derramavam optimismo.

Na segunda semana era o receio. Preparava-se a 3.ª fase do desconfinamento, mas o elevado número diário de novos infectados na região de Lisboa e Vale do Tejo persistia. As pessoas começaram a retrair-se de recuperar as suas rotinas esquecidas, sobretudo nas aéreas de maior incidência da infecção. Aguardava-se a comunicação diária da tutela da saúde com apreensão, esperando por medidas visando conter o já inequívoco e muito concentrado foco infeccioso. Sem novas propostas, o discurso era de confiança na etiqueta social de todos nós.

Na terceira semana era a perplexidade. Para além do adiamento da última fase de desconfinamento na Grande Lisboa, tudo permanecia igual, com o número de novos infectados a bater recordes (421 no dia 9 de junho). Os políticos incutiam o regresso à normalidade através do exemplo, nos restaurantes, nas praias, nos espectáculos. Os jovens aproveitavam e faziam festas em bombas de gasolina (!?). É verdade que há um número elevado de novos infectados diários (quem o pode negar?), mas parece ser devido ao rastreio intensivo. Alguém mais distraído poder-se-á perguntar se não houvesse testes não haveria infectados. Até nem seria um raciocínio inédito. Afinal é esta a lógica do Presidente Trump, que diz que se os Estados Unidos parassem de testar não teriam casos. Nós, porém, temos um melhor conhecimento e sabemos que os testes não criam situações, infecções, mas revelam-nas.

Na quarta semana é a indiferença. Andamos agora pelos 300 e tal novos casos por dia. Não sabemos bem quantos porque já não ouvimos o boletim diário e se a informação passa nos telejornais só ouvimos as centenas. De facto, os números tornaram-se irrelevantes, as medidas confirmaram-se inexistentes, a comunicação prolongou-se errante e resta a indiferença. Depois do forte empenho da maioria dos portugueses em adoptar comportamentos recomendados para controlar a infecção, da genuína preocupação em proteger os outros protegendo-se, depois até de sermos considerados o bom exemplo da Europa no distante mês de Abril, estamos agora entre os piores, só ultrapassados mesmo pela Suécia que, afinal, rejeitou todas as medidas restritivas em prol da miragem de uma imunidade colectiva.

Pelo caminho, nestas últimas semanas, ficou o debate sobre os cordões sanitários, profilácticos, que afinal são sociais e discriminatórios. Ovar não o percebeu no mês que permaneceu cercada, nem tão pouco os seis concelhos da ilha de S. Miguel também com uma cerca sanitária durante um mês, ou ainda Câmara de Lobos, na Madeira. Acreditaram que a cerca era mesmo sanitária e que protegia os seus habitantes e os demais.

Nesta crónica da pandemia recordo os debates iniciais entre a protecção da saúde pública e a dinamização da economia nacional, como se devêssemos optar por uma na exclusão da outra, quando o desafio sempre foi o de manter um equilíbrio dinâmico entre ambas, ora pendendo para a primeira, na fase de mitigação, ora para a segunda, na fase de desconfinamento. Agora, porém, temo entrarmos numa prevalência da política em que a saúde não está certamente acautelada e a economia também não. O bem hoje mais precioso para uma reactivação económica sustentável, sobretudo nos países que dependem fortemente do turismo, como tem sido o caso de Portugal (a maior actividade exportadora do país com um peso de 8,7% no PIB), é ser “covid-free”. Os Açores e a Madeira garantiram-no com as suas medidas hoje supostamente discriminatórias; Portugal continental, não, e mais parece “covid-full”. Por isso, à exclusão do nosso país da abertura de fronteiras da Áustria e da Grécia, soma-se esta semana a Dinamarca. Ainda corremos o risco de serem os outros países a imporem-nos a cerca sanitária.

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