Este quiosque é uma taberna das memórias de Lisboa: há petiscos e “xiripitis” no Cais do Sodré

A Taberna da Rua das Flores desceu do Chiado ao Largo de São Paulo e renovou a vida do clássico quiosque com esplanada. Da salsaparrilha à sandes de torresmos, do branco velho à miomba, os taberneiros homenageiam a cidade.

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André Magalhães no Quiosque do Largo de São Paulo Nuno Ferreira Santos
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Quiosque do Largo de São Paulo Nuno Ferreira Santos
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Quiosque do Largo de São Paulo Nuno Ferreira Santos

Quando Catarina Portas lhes disse que o quiosque do Largo de São Paulo, em Lisboa, estava vago, os três sócios da Taberna da Rua das Flores – André Magalhães, Bárbara Cameira e Tiago Alves – não hesitaram. Com a Taberna reduzida a 14 lugares, devido às restrições provocadas pela pandemia de covid-19, o quiosque oferecia aquilo que lisboetas e visitantes da cidade mais ambicionam por estes dias: uma esplanada (neste caso com 30 lugares).

E oferecia também, sobretudo a André Magalhães, a oportunidade de pôr em prática uma série de ideias que tem há muito. Assim, desde o dia 10 de Junho pode comer-se no quiosque vermelho uma série de clássicos da cidade, petiscos vindos de bares e tabernas que nos últimos anos foram encerrando portas, como a Casa Cid, que, recorda André, “antigamente fechava às 22h e reabria às 2h da manhã para já não voltar a fechar”.  

Quiosque Largo de São Paulo Nuno Ferreira Santos
Quiosque Largo de São Paulo Nuno Ferreira Santos
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Quiosque Largo de São Paulo Nuno Ferreira Santos

“Na parte das sanduíches ressuscitámos a bucha”, conta. “O pessoal sempre pôs comida dentro do pão, e por isso vamos ter a sandes de sangacho de atum, o caldinho [café com ginginha] e a sandes de torresmos com manteiga de chouriço”, em homenagem ao Rei dos Torresmos, também conhecido como Quiosque da Bomboca, que ali perto, no Cais do Sodré, aviava centenas de buchas para os estivadores que passavam às primeiras horas da madrugada e as levavam embrulhadas em jornal.

A também já encerrada Adega dos Canários é recordada pela sandes de lula frita – um dos petiscos incontornáveis do novo quiosque – servida com maionese picante. Igualmente obrigatório para quem passar pelo Largo de São Paulo é provar uma miomba com batata Ti-Ti, que já era servida na Taberna e para a qual sempre tinham pensado vir a ter um ponto de venda.

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André Magalhães, o chefe da Taberna da Rua das Flores Nuno Ferreira Santos

A miomba, resume André, é “o pai e a mãe dos pregos e das bifanas nos livros antigos, uma isca de carne de porco ou de vaca entre dois pedaços de pão”. Quanto à lista de salgados inclui, para além do clássico bolinho de bacalhau, duas coisas pelas quais muitos lisboetas têm suspirado em vão: pastel de massa tenra e ovos verdes.

Nos “pratinhos”, a oferta vai variar conforme os produtos disponíveis, mas podem-se esperar, por exemplo, salada de polvo, salada de orelha, punheta de bacalhau ou cavala com feijoca. “Pode haver caracóis, pipis, camarão do rio, conforme a época. Há-de aparecer uma tripa com feijão”, continua André, explicando que está a trabalhar com os talhos da Ribeira para ter partes dos animais que também já raramente se encontram.

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Quiosque de São Paulo Nuno Ferreira Santos

A comida é feita na cozinha da Taberna e trazida para o quiosque, onde algumas coisas são apenas finalizadas (o pão das sandes, por exemplo, feito na Panificadora das Mercês, é sempre aquecido numa pequena grelha encaixada no pequeno interior do quiosque. Esta oferta mais tasqueira acontece a partir das 11h30 da manhã. Antes disso, o quiosque está a funcionar para pequenos-almoços, com sandes várias (entre as quais ovo e salsa e ovo e salsicha fresca), pães de leite (há até, a recordar a infância, com marmelada e queijo), os salgados e pastelaria.

E depois, há, claro, as bebidas. Afinal, este quiosque dos finais do século XIX nasceu de uma “pedra de refresco”, que à época “era uma novidade em Lisboa, onde as pessoas nem sabiam o que era uma bebida carbonatada”. Este pertencia à família Castanheira, cujo nome ainda aparece na parte superior, ao lado das bebidas anunciadas: ginja, cerveja, etc. As próprias cervejas, sublinha André, “eram um factor de modernidade”.

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Também na secção de bebidas a carta é uma homenagem à Lisboa de outros tempos: para além do capilé, do mazagran ou da flor de sabugueiro, dos originais Quiosques de Refresco criados por Catarina Portas e João Regal, André, Bárbara e Tiago trazem, na secção dos “xiripitis”, ginja, bagaço, genebra e jeropiga, e, na dos aperitivos, coisas como o Favaíto, vermute, vinho quinado, banco velho, genebra tónica, mata-bicho ou o “outedór”, a brincar com a memória de um aperitivo do British Bar, com vinho generoso, soda e limão.

Pode até pedir-se, imagine-se, uma salsaparrilha, refresco cuja receita vem do século XIX, à base de raiz de salsaparrilha, raiz de alcaçuz e sassafrás, tudo comprado nas resistentes ervanárias lisboetas, espaços, diz André, “com um potencial gastronómico extraordinário”.

E assim, entre xiripitis e sandes de torresmo, os taberneiros descem à rua para manter viva a memória de uma Lisboa já quase desaparecida.

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