As nuances do país galego

Ouvimos dizer que a língua é a única herança que quanto mais partilharmos mais valor nos devolve a todos. Na Galiza, o português é também a única língua promovida por unanimidade em que se uniram as vontades e identidades diversas do nosso país

Ao contrário do castelhano, o português tem uma capacidade especial em indicar diferentes graus de concordância ou discordância com o posicionamento do interlocutor. Isto tem criado muita confusão a alguns estrangeiros, mas nunca aos japoneses. Estes não apenas “defendem uma inteligente posição neutral”, mas antecipam o que o outro interlocutor pode querer antes de ele falar.

Reparemos no seguinte: quando uma pessoa falante de português está a responder “talvez”, ela poderá eventualmente querer dizer sim, mas muito provavelmente está a dizer-nos “não”, educadamente.

Assim sendo, quando dizemos por exemplo “acho que isto pode vir a acontecer”, um falante de castelhano provavelmente diria “sei que isto vai acontecer”. É uma maneira de nos proteger e proteger também futuras trocas de opiniões dentro das boas maneiras de nos relacionarmos.

Um outro elemento de “proteção” quando não aceitamos aquilo a que nos quer obrigar alguém ou quando nos falam sobre assuntos desagradáveis é o silêncio. É dito que o silêncio é a melhor defesa do camponês.

E a Galiza mergulha a sua cultura na cultura camponesa.

É também dito que um mau pacto é melhor do que pacto nenhum. E quando, por exemplo numa feira, dois negociantes de gado não chegam a acordo, sempre há quem recomende que “partam a diferença” (deixem o preço no ponto meio entre a aposta de um e a petição do outro).

Há ainda uma outra reflexão de senso comum: é que não há nada pior do que as guerras.

Na Europa qualquer um sabe que as guerras contra o fascismo foram horríveis. Mas poucos europeus sabem que ainda pode haver outra cousa pior: perdê-las e conviver com quem as ganhou.

40 anos são muitos anos para uma convivência assim.

E o primeiro que se aprende nessas convivências é a não “se destacar”, saber-se camuflar, não dar nas vistas.

Nós, galegos, somos peritos de maneira tripla nos silêncios e nos significados duplos:
por bebermos da cultura camponesa,
por falarmos a língua comum
e por termos perdido a guerra.

Permitam-me caros leitores por essa razão falar hoje por uma vez “à castelhana” e sem papas na língua, afinal essa maneira de falar, direta
e sem medo às consequências,
tem qualquer coisa de vantajosa,
sem nos importar se incomodamos alguém
ou nos colocamos em perigo.

Vamos lá tentar, mas nem sempre conseguiremos, afinal dizem que somos todos virados para a poesia.

Cena primeira - Nunca dar nas vistas

E esta é uma história de acordos e acordinhos, de silêncios clamorosos e silencinhos e de quem pretenderá hoje “partir a diferença” como se já estivéssemos numa feira de gado entre iguais.

Quando todos nos lembramos, e muito bem, de que nunca houve igualdade de condições:

Houve quem veio à força, levou a vaca e pagou com uma surra.

Fiquem por enquanto com estas palavras: pactos, silêncios e jogo sujo. Eis o nosso passado recente.

Neste mês de maio ouviram-se deste lado da raia muitas opiniões e comentários acerca dos posicionamentos sobre a língua na Galiza por causa da pessoa que recebeu, finalmente, o direito à homenagem oficial por parte das autoridades[1]. Carvalho Calero é o autor do Dia das Letras de 2020.

Destarte passou a ser o primeiro escritor homenageado claramente contrário à ideologia linguística de quem ainda quer mandar sobre a língua de 2,7 milhões de pessoas.

Um bom passo adiante, não apenas porque quebrou o pretenso muro de silêncio arredor dos assinalados como lusistas pelas autoridades, mas por ser um autor cujo discurso científico tem especial relevância.

Confiram:

Nós, galegos, tivemos, desse lado da Raia, o prof. Rodrigues Lapa, e do outro lado do oceano o prof. Guerra da Cal[2] a apontarem para as soluções da questão do português na Galiza.

Mas terá sido no interior da Galiza franquista que tivemos o prof. Carvalho Calero clarificando o que é que devia ser feito (dentro das possibilidades do momento) para que os utentes da língua comum recuperassem finalmente plenos direitos no nosso pequeno país.

Por falarmos nas possibilidades do momento, muitas pessoas não chegam a perceber os condicionantes da realidade social da geração “galeguista[3] durante a ditadura. Eu apenas consigo imaginar e transmitir uma aproximação a essa realidade. Basta explicar que a primeira gramática da língua nessa época foi publicada em castelhano “Gramática elemental del gallego común” por medo ao lápis azul.

Eis um primeiro grande “Silêncio”. Poucos jovens sabem hoje, e muito poucos ouviram nas aulas, que houve um lápis azul também na Galiza a condicionar as escolhas das palavras nas canções, nos livros ou nas associações culturais.

É isto que une brasileiros, portugueses e galegos, e não só, isto de se dizerem coisas sem dizer durante as ditaduras; no nosso caso acrescente-se usar uma língua sem usá-la por demais, ou “sem dar muito nas vistas”.

Camuflagem.

Eis o porquê de, na Ditadura de Franco, só se legalizarem no nosso país nomes curtinhos com palavras próximas ao castelhano para os grupos culturais: O Galo, O Facho, Amigos da Cultura, ou diretamente os títulos dos livros importantes em castelhano.

Para não arriscar de mais.

Cena segunda – O Reino em que nada se passava

Mas este texto que se pretende sobre língua quer falar das coisas incómodas, vamos lá a isso.

Nós não tivemos 25 de Abril.

Tivemos um pacto à espanhola, em que os membros galegos do regime franquista foram comprando novas roupas para se vestirem à moda europeia sem abandonarem o poder. E isto tem muito a ver com as línguas.

Continuemos.

Chamaram o prof. Carvalho Calero para construir um primeiro modelo de norma para a escola. Na altura era uma autoridade universitária por méritos próprios, com um labor científico inquestionável. Mas logo se viu que tinha um determinado “problema” pessoal: mantinha ainda os valores republicanos e quis, antes de mais, ser honrado.

A sua ideia foi oferecer uma tímida proposta de acordo para esse momento sobre a língua. “Partamos a diferença”, diriam numa feira. E Carvalho falou: vamos propor a escrita da nossa língua quer com “nh” quer com “ñ”[4], mas não vamos impor ou perseguir ninguém pela forma como decidir escrever.

Não era exatamente isso que tinham em mente as pessoas que mandam.

Porque isso abria a porta ao debate. E em palavras dum dos que tinham esse poder, um desses homens pequenos que recordam o rei solitário do principezinho, “eu tenho o poder, quem tem o poder nada tem de debater”, Carvalho foi apartado.

O silêncio institucional e o ostracismo para o professor Carvalho quebrou-se 40 anos depois. Hoje, em 2020.

Vamos voltar atrás no tempo. Procuremos enxergar o ponto de situação desse momento, ali, na passagem de 70 para a década de 80: a língua da Galiza era totalmente maioritária, mas ainda proscrita na esfera pública oficial. Tal e como Portugal sob Marcello Caetano, a Galiza de Franco era oficialmente um lugar onde nunca se passava nada, e em acréscimo ao “nada acontece” oficial, aqui apenas “existia” o castelhano.

A língua inexistia apesar de ser língua geral da população. Mais um silêncio dentro do silêncio.

E isto era um clamor impossível de manter oculto ao se iniciar a transição espanhola. Era inevitável permitir a entrada da nossa língua na escola, e não apenas que se pudesse falar sem punição, mas também escrever e (até!) estudar uma língua que até esse momento (de novo o silêncio) “não existia” oficialmente para além das multas a quem se excedesse no seu uso ou defesa pública. A língua da Galiza, o galego, ia entrar na escola.

Galego na escola, qual galego iriam permitir na escola os gestores franquistas?

Os gestores da transição espanhola tinham um problema ideológico, motivo principal da nossa discrepância. E qual a origem da discrepância radical das posições sobre língua na Galiza? A origem parte destes dois pecados, intoleráveis a visões contrárias, que a seguir tentarei explicar:

Por um lado, o pecado de quem defendeu regenerar a língua comum usando a variedade livre da língua (o português, língua oficial noutro estado fronteiriço). Isto dentro dum Reino com as fronteiras com passagem condicionada. E em que até bem pouco tempo as fichas policiais marcavam “criminosos” com apelidos como ““galheguista”, lusista” ou “separatista” se estes se excedessem na sua defesa doutra cultura nacional diferente da castelhana.

Pelo outro lado, o pecado de quem possuía o poder para governar e devia aceitar o galego na escola, mas marcando uma clara linha vermelha: a forma em que o galego se escrever nunca poderá dificultar a aprendizagem do castelhano. A única língua culta, completa, imprescindível, obrigatória, será o castelhano.

Nesse braço de ferro já intuem quem manteve o poder para, mais uma vez, se impor.

Cena terceira – Chicória por café

Agora convido o leitor a pensar nisto: como fazer com que as próprias horas destinadas à aprendizagem duma língua não interfiram em que se esteja a aprender uma outra língua?

Sei, é preciso ler de novo.

Leiam novamente se faz favor: Como fazer com que as próprias horas destinadas à aprendizagem duma língua não interfiram em que se esteja a aprender uma outra língua?[5]

Para continuar a explicar este assunto será preciso entrar, com pés de lã, na área da sociolinguística introduzindo mais um conceito nesta nossa conversa imaginada.

Para quem trabalha na área da língua, existe um conceito que explica muito bem um determinado uso linguístico de aplicação entre castelhano e português.

É o conceito de Interlíngua.

Uma interlíngua é, na origem, um falar fruto duma necessidade prática. É usada por falantes fronteiriços entre dois países de línguas próximas. A interlíngua é um elemento útil nas transações de fronteira, por exemplo, entre a Argentina e o Brasil, chamada ali de portunhol.

Porém, se se pretender usar essa língua momentânea como modelo para a codificação duma suposta nova língua, isso levantará um problema de prestígio social.

Ninguém numa sociedade de classes à europeia vai querer manter esse falar além do estritamente necessário. E vai, sim, querer aprender corretamente a língua do estado ao qual pertence (e aquela que as classes altas dos respetivos países utilizam).

O uso de línguas tem uma relação complexa com as estruturas de poder que transcende este texto e desviaria o foco do seu assunto principal, que é olhar por baixo do tapete. Por causa disso, fiquemos por enquanto com a ideia de que uma interlíngua desse teor poderá durar 50 ou no máximo 100 anos úteis na era digital, mas acabará por desaparecer, fora de usos ritualizados, para evitar duplicidades inúteis.

As pessoas não são parvas, mas essencialmente práticas no uso das línguas, e ninguém, se puder escolher, vai preferir um sucedâneo mas irá antes diretamente usufruir do original, como acontece com a chicória frente ao café.

No caso da escola galega, o café é claramente castelhano.

Em contraste, uma língua europeia como a nossa anda hoje pelos 1200 anos e continuará a vigorar no futuro. Por isso, se nos permitirem livremente oferecer cafés para todos, também na escola (e quem já experimentou sabe disto), melhor é sempre o café português.

Uma interlíngua é estudada, aliás, como uma armadilha para os utentes que quiserem dominar as duas línguas. Parece que avançam muito rápido ou mesmo acham que dominam com certo grau de competência as duas línguas, mas a língua ambiental dominante impregna todo o modelo. No melhor dos casos dominarão apenas uma das línguas: a língua do estado. No pior, nenhuma. Evitarmos essas interferências e decalques sem existirem limites claros entre as duas línguas é complexo e esgotador.

A proposta de escrita inaugurada em 1980 deste lado da raia parece-se muito com uma “interlíngua” galega, ou luso-espanhola. É aquilo que podemos chamar de “pão para hoje e fome para amanhã” a respeito das competências reais dos estudantes galegos: meia língua (galego) versus língua e meia (castelhano) ou, se quiserem, uma das línguas de pé coxinho e a outra, a língua a sério, com duas pernas e meia.

E sim, no tema da língua houve quem pretendesse conscientemente vender fome como ideia de futuro e um modelo literário de perna e meia.

Há também quem prefere falar nessa grafia escolar à castelhana como um autêntico Cavalo de Troia, uma outra imagem esclarecedora.

Cena quarta – Despolitizar a língua? Um passo em frente, dois passos atrás

Assim sendo os nossos pecados originais, cada um com os seus, são irreconciliáveis porque partem também de posicionamentos políticos, de maneiras de entender a vida e a sociedade.

Sim, essa palavra que escorrega da boca porque ninguém a quer pronunciar. Mas, se até a vida íntima é política (como demonstraram as feministas) como poderia a língua pública não ser um assunto da política?

E para falar em política há que falar das origens ou de “quem vem sendo[6] cada uma das partes:

Quem possuía o poder do franquismo após Franco, ou quem manteve a chama da memória do que estes “fizeram” e ainda hoje querem que não se saiba.

Nós, galegos, não temos um verdadeiro Museu Nacional Resistência e Liberdade. As nossas Torres do Tombo dispersas e mal localizadas têm as portas fechadas aos investigadores dos excessos da PIDE. A nossa memória continua resistente e não institucional. O silêncio é clamoroso. Nisso temos uma grande dívida pendente, permanente.

Basta lembrar que o primeiro presidente democrático da Galiza, Afonso R. Castelão (seria o nosso Teófilo Braga) é lembrado hoje socialmente como um grande pintor, cartoonista e escritor ou até um grande pensador, mas nunca oficialmente como presidente do governo galego no exílio.[7] Passados 80 anos. Presidente inexistente dum governo inexistente.

Mas para darmos mais dados e voltarmos só à língua – Década de 1980:

Uma série de manobras políticas possibilitam o chamado “Decreto de Normalización”, uma lei que em 1983 impõe a grafia exclusiva do castelhano e proíbe os usos do português na Galiza.

Este decreto foi elevado a lei pelas manobras de muitos homens, sim sempre homens, do regime político saído do franquismo; citaremos apenas Filgueira Valverde, por nomear uma dessas autoridades públicas do regime franquista que condicionarão o modelo de “oficialidade” do galego.

Até hoje foram bem pagos por isso. Com cargos e dinheiros públicos. Honras para os franquistas[8], silêncios para os democratas republicanos.

Isto traz um outro assunto à tona: um amigo comentava noutro dia como é que era possível não existirem praticamente biografias a falar criticamente da vida de certos autores galegos colaboracionistas do franquismo, e mais uma vez o silêncio é uma palavra dolorosa na Galiza.

Parece que os membros do fascismo não só fizeram barbaridades; não apenas governaram e roubaram todo o que quiseram; não só ocultaram a história dos democratas; tiveram ainda bem tempo para apagar as suas pegadas e até tentar passar por cordeiros na terra dos lobos.

Nesse sentido, livros de atualidade editorial que se debruçam sobre esses silêncios que nos trespassam, como o Seique, da profª. Susana Sanchez Aríns[9] falam mais de língua e do que “acontece(u) com a Galiza” que qualquer outro artigo que disponível em revistas especializadas.

Justiça, reparação, verdade... Matéria pendente.

Por estes silêncios há na Galiza cordeiros que mostram os dentes e lobos que aparentam cordialidade. Nomeadamente quando se reduz a questão da língua a um simples debate técnico entre iguais, como poderia acontecer noutros países livres entre defensores ou detratores do Novo Acordo, por colocar uma evidência.

No caso dos galegos, só há dois posicionamentos extremos a marcarem o futuro. Posicionamentos que quando levados à pratica moldam-se à mistura, justificam-se ou suavizam-se, sim; com todas as nuances que quiserem e por todo o tipo de razões (laborais, falta de formação, erro de análise, negativa a aceitar a realidade, interesses espúrios ou mesquinhos).

Mas são estes:

Ou defendermos a sério a continuidade e o ensino da língua nacional dos galegos protegendo e promovendo para isso a sua unidade essencial como variedade local de português; ou continuar a vender chicória e fogos de artifício[10]que são inoperantes e favorecem o avanço do castelhano.

Ou dito em palavras do prof. Carvalho Calero, autor das Letras Galegas de 2020, dispomos apenas de duas alternativas: “o galego, ou é galego-português, ou é galego-castelhano, não há outra alternativa”.

Ao que qualquer conhecedor da permanência das interlínguas na era digital permitirá trocar, sem meias tintas, a ordem dos fatores: “o galego, ou é português-galego ou é castelhano-galego”. O resto em termos históricos tem a data de validade dum iogurte.

Cena quinta – A vitória dos perdedores, na terra em que ninguém se demite

Se até aqui chegaram, faltam ainda mais uns temas para tratar.

Muito bem, imaginemos que esta foi a situação. Mas o passado, passou, e lá foi e já era...

Mas, e agora, agora o quê?

Isto tudo tem as suas consequências no presente, não tem?

Há uma boa notícia: Não há becos sem saída.

Agora toca aos galegos gerirmos a derrota entre todos, mas para isso faz falta primeiro recuperar memórias como estas e abrir debates como os atuais. Aceitar que muito aquém de continuar súbditos caladinhos desejamos antes ser cidadãos que falam.

Nisso andamos, e bem encaminhados, ao que parece.

O debate é a nossa vitória.

Porque os debates por muito que se pretendam apagar sempre acabam por vir à tona.

E no nosso país a língua é um debate que arrasta consigo outros debates.

Todos saudáveis, todos possíveis, num país normal.

O debate da língua é também a defesa do direito a existir do povo que a fala. É também um assunto de soberania política, de valores republicanos, de direitos civis, de igualdade social, de desobediência civil, de respeito pelas identidades diversas e pelas comunidades nacionais e sim, até de livre-determinação ou direito a decidir futuros possíveis. E nada disto é ilegal.

Qual debate técnico entre iguais?

2020 foi um bom primeiro passo para limpar o pus das feridas.

Repita-se a homenagem ao autor em 2021.

Haja debates, e eliminem-se os impedimentos no uso da grafia portuguesa.

Mas não queremos que nos utilizem nem hoje nem nunca apenas para limpar as suas vergonhas.

Bem sabemos que vivemos no país onde nunca ninguém se demite. Os responsáveis continuarão a viver do público e a tirar os seus lucros. Não assumirão as suas responsabilidades. E contudo poderão aproveitar livremente o espaço que foi criado aos poucos para manter uma língua culta e universal. A porta está aberta, também para eles, essa é também outra cara da nossa vitória. Aqui não há língua privativa. É assim, português, para todos, para todas.

O português na Galiza nunca será o condomínio privado de ninguém. É de todos.

Elimine-se, pois, a discriminação.

Comecemos pelo princípio mais básico: Chamar de lusistas aos galegos preocupados com a língua tem de deixar de estar associado a sermos criminosos por delitos de lesa-pátria e significar aquilo que é: pessoas preocupadas com o presente e o futuro da língua, aqui deste lado, onde nasceu.

Franco? Acabou. Filgueira? Acabou. Fraga? Acabou.

Podemos dizer, sim, que a Galiza dos três F já morreu.

Morreu o demo e acabou a peseta[11].

Epílogo – Chega de poesia

A geração nascida com a transição espanhola tem fome. Fome de normalizar a nossa relação com o português e cansaço ao vermos a sua presença oficial permanentemente na corda bamba. Queremos café já, e queremos café já de manhã.

Quarenta anos de autogoverno galego são já muitos anos à espera do português, por isso, agora, se faz favor, já sem mais chicória nem mais palavras ao vento: rádios nas ondas, televisões gratuitas em aberto, oferta de português em todos os centros de ensino, livros nas bibliotecas e nas campanhas oficiais de promoção das línguas.

Lancemos as bases dum futuro melhor. Talvez assim, só talvez, com todos os apoios e ferramentas disponíveis, consigamos recuperar a língua e inverter a tendência atual de esmorecimento da língua. O castelhano nunca estará em perigo. Quem está em perigo de continuidade é a língua dos galegos.

Sobre como promover a língua está tudo pronto nas leis europeias, espanholas e galegas[12]. E também na prática está tudo por desenvolver a sério. Repito as prioridades: Receção de rádios e televisões portuguesas, paridade legal nos dinheiros públicos para quem editar em português, compras de livros e imprensa em português nas bibliotecas... Com destaque especial nas prioridades para o português no ensino público (em que o número de especialistas contratados é ínfimo, claramente ridículo). Acabem já com os fogos de artifício. Urge democratizar e generalizar o livre acesso à língua portuguesa, acesso que por enquanto continua individualizado e condicionado através do castelhano.

Sobre os direitos dos cidadãos basta dizer que somos também cidadãos da União Europeia. Não está escrito em lado nenhum que os galegos que vivem em português têm que ser cidadãos europeus de segunda categoria. Por isso será preciso atender sem mais delongas este assunto num outro patamar. Três são os cenários possíveis: o governo galego poderia ratificar o Novo Acordo Ortográfico; em alternativa poderia tornar cooficial também o português a par do castelhano e do atual galego; no mínimo pode considerar verdadeiramente prioritária essa “língua estrangeira” ao lado do atual galego institucional, o que pode ser feito com vontade política como temos visto no ensino galego a respeito do inglês.

Qualquer um destes três cenários assegura uma igualdade real entre quem quiser continuar a grafar à castelhana o galego e os que, contra ventos e marés, estiveram a tentar viver com normalidade o facto de usarmos a grafia comum. Isto não só defenderá os direitos dos utentes de português na Galiza. Ajudará os usuários do “galego com ñ” ao oferecer maiores e melhores condições de língua ambiental (português comum) para quem usar a atual norma gráfica escolar.

Aliás, promover o português permitirá um acesso a esta riqueza também para os castelhano-falantes, muitas vezes grandes esquecidos destes debates e para quem este património comum é língua de herança que podem reclamar e aproveitar para si. Ouvimos dizer que a língua é a única herança que quanto mais partilharmos mais valor nos devolve a todos. Na Galiza, o português é também a única língua promovida por unanimidade em que se uniram as vontades e identidades diversas do nosso país[13]. Aproveitemos esta vantagem para construirmos uma sociedade coesa.

Hoje há quem fala na Galiza em defender duas normas para a língua da Galiza, sob a palavra de ordem do chamado “Binormativismo”[14]. A intenção é conseguirem que a norma do português usada por galegos obtenha maior oficialidade. Binormativismo ou cooficialidade, acho que o nome não interessa. Isso é cousa dos políticos. Interessa é a equiparação em direitos iguais. É a solução mais simples na atual situação. Já agora, lembra, e muito, a solução proposta pelo prof. Carvalho na década de 80. Agora adaptada ao século XXI: sem impor nada a ninguém, defendamos políticas públicas que permitam oficialmente ambas as grafias. Falemos de igual para igual e, assim sendo, partamos a diferença, haja aceitação e acordo.

Porque ou comemos todos ou há moralidade.

 

[1]Na Galiza celebra-se cada ano o feriado oficial das Letras Galegas em homenagem a um autor relevante da cultura.

[2]Incontornável a sua Presidência da Comissão Galega do Acordo Ortográfico de 1990, mas isso faz parte doutros silêncios que não o de hoje.

[3]Defensores da regeneração cultural da Galiza

[4]  Com: nh – ñ→  a minha casinha - a miña casiña, ou com lh – ll → o meu filho – o meu fillo

[5]As regras ortográficas e de acentuação são as castelhanas, quer para o castelhano quer para a língua da Galiza. Aliás, o galego é em múltiplas ocasiões comummente explicado a partir do castelhano.

[6]É a maneira em que na Galiza tradicional se perguntava a que família ou casa pertences “e tu de quem vens sendo?”

[7]Na Galiza só é contabilizado como primeiro presidente galego um homem do regime franquista que ninguém votou em urna: Antonio Rosón, https://www.xunta.gal/os-anteriores-presidentes.Ao contrário do que governos basco e catalão, por exemplo, que registam publicamente os seus presidentes republicanos no exílio como presidentes oficiais. Afonso D. R. Castelão foi Presidente do Governo galego no exílio no período 1945-1950.

[8]Convém referir que Franco foi membro de honra da Real Academia Galega que defende a grafia castelhana até 2009.

[9]    Disponível em galego escrito com grafia portuguesa no original

[10]A classe política leva décadas a falar a respeito da promoção do português, mas são propostas que ficam em águas de bacalhau dia sim e dia também. É a sociedade civil quem articula o grosso dessa promoção.

[11]Dito popularizado durante a ditadura franquista pelo teatro de fantoches “Barriga Verde” para acabar as suas encenações.

[13]Mais uma vez ILP Paz andrade, como exemplo de acolhimento de todas as sensibilidades.

[14]Conceito que se refere as do estatuto legal (ao lado das hodiernas), quer estas normas quer o próprio Acordo de 1990.

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