Por que decidiu J. K. Rowling falar sobre violência doméstica quando o tema era o género?

A autora de Harry Potter publicou um ensaio, em resposta às críticas às suas publicações sobre questões de género. No texto, revela que foi vítima de violência doméstica e de agressão sexual.

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Críticas aos comentários sobre a comunidade trans levou a autora a escrever um ensaio sobre o tema Reuters/Carlo Allegri

A autora da saga Harry Potter, J.K. Rowling divulgou um ensaio de 3600 palavras, na quarta-feira, relacionando a sua experiência de vítima de agressão sexual à preocupação com o acesso de transgéneros a espaços exclusivos para mulheres.

“Estou a falar sobre estas coisas agora, não numa tentativa de conquistar simpatia, mas por solidariedade com o elevado número de mulheres que têm histórias como a minha, que foram criticadas por serem fanáticas ao preocuparem-se com os espaços para um só sexo”, escreveu.

Rowling, de 54 anos, divulgou o ensaio online depois de ser criticada nas redes sociais por fazer publicações de mensagens “transfóbicas”, que para alguns questionava a identidade das pessoas trans e que as excluía de espaços públicos. 

Os tweets levaram a reacções até por parte de Daniel Radcliffe, protagonista dos filmes Harry Potter, e Emma Watson, que deu corpo a Hermione Granger nas adaptações dos livros ao cinema.

Rowling disse que as críticas a deixaram num sítio mentalmente sombrio pois a relembraram da agressão sexual que sofreu quando tinha 20 anos. “Aquele ataque aconteceu num momento e num sítio em que eu estava vulnerável, e um homem aproveitou a oportunidade.”

O que disse Rowling sobre espaços unissexo?

Rowling, uma sobrevivente de violência doméstica, disse estar preocupada com o “novo activismo trans” que está a corroer os direitos das mulheres a acederem a espaços de um só sexo ao mesmo tempo que acusa aquele movimento de “proteger predadores”.

“Não consegui apagar essas memórias [do ataque] e estava a ser difícil conter a raiva e decepção pela maneira que acredito que o meu Governo está a descurar a segurança das mulheres e raparigas”, escreveu.

“Quando abrem as portas das casas de banho e vestiários a qualquer homem que acredite ou sente que é uma mulher… então abrem a porta a todo e qualquer homem que queira entrar.”

Porquê o furor?

Rowling está descontente com os planos da Escócia para adaptar a lei no sentido que pessoas trans possam mudar as certidões de nascimento sem precisarem de apresentar um diagnóstico médico.

As pessoas trans ainda vão ter de viver com o sexo de nascença durante seis meses antes de o certificado de reconhecimento de género ser concedido.

A autora alega que a reforma “de facto significa que tudo o que um homem precisa para se ‘tornar mulher’ é dizer que é uma”.

As reformas propostas pela Escócia vão deixar o país ao mesmo nível que a Irlanda, Portugal, Noruega e Argentina, que permitem que as pessoas trans mudem o género legalmente sem qualquer diagnóstico de saúde mental.

O que diz a lei britânica?

“As pessoas trans usam os espaços de um só sexo, incluindo casas de banho, correspondentes ao sexo com que se identificam há décadas”, disse Cara English, da Gendered Intelligence, uma organização britânica de direitos trans, à Reuters.

“A violência masculina contra as mulheres não tem nada a ver connosco”, refutou.

Os defensores dos direitos trans enfatizam que as mulheres trans são mulheres. A Lei de Igualdade da Grã-Bretanha de 2010 protege as pessoas trans de discriminação por acederem a espaços exclusivos a um género.

A lei prevê excepções em circunstâncias especiais, como no caso dos grupos de apoio a mulheres vítimas de agressão sexual, em que se acredita que quem procura este tipo de terapia possa ficar desconfortável com a presença de uma mulher transgénero. Porém, um inquérito parlamentar de 2019 não encontrou nenhuma evidência desta excepção já ter sido usada.

Qual a experiência dos abrigos de mulheres?

Nos Estados Unidos, grupos defensores dos direitos das mulheres disseram que 200 dos municípios que passaram a permitir que pessoas trans utilizassem as instalações destinadas a vítimas de violação e abrigos de violência doméstica verificaram não ter existido, por isso, qualquer aumento de violência sexual ou de questões de segurança pública.

“As pessoas transgénero já vivenciam taxas injustificadamente altas de agressão sexual – e forçá-las a sair de instalações que correspondem ao sexo com que se identificam torna-as mais vulneráveis a agressões”, disseram.

Como é que as pessoas trans se sentem com o debate?

As linhas de apoio LGBT+ (Switchboard na Grã-Bretanha e The Trevor Project nos Estados Unidos) disseram que sentiram um aumento de chamadas por parte de pessoas trans, na altura em que os governos propuseram reverter os direitos dos transgéneros.

Além disso, segundo um estudo do The Trevor Project, de 2019, os adolescentes trans apresentam taxas muitos mais altas de problemas de saúde mental e violência sexual do que aqueles que se identificam com o género de nascença, adiantando que, ao longo do ano passado, pelo menos um em cada três terá tentado o suicídio. E as afirmações de Rowling poderão servir de combustível num fogo já bem ateado. Alphonso David, chefe do grupo de direitos LGBT+, Human Rights Campaign, nos Estados Unidos, considerou até que os comentários de Rowling podem incentivar a discriminação e crimes de ódio.

“J.K. Rowling está a traficar mentiras prejudiciais num momento em que a comunidade trans enfrenta uma violência indescritível”, referiu em comunicado, acrescentando que 26 pessoas trans e com variação de género foram assassinadas, em 2019, nos Estados Unidos. Ainda esta semana, no mesmo país, foram assassinadas duas mulheres transgénero: Dominique Rem’mie Fells foi encontrada num rio em Filadélfia e apresentava múltiplos traumas e escoriações; Riah Milton foi baleada em Cincinnati quando um grupo lhe tentava roubar o automóvel.  

Então, quem corre o risco em casas de banho femininas?

Algumas pessoas trans dizem que sentem uma hostilidade tão intensa que vivenciam o que designam por “bexiga trans”, passando o dia inteiro sem irem à casa de banho, contou Ruth Pearce, investigadora de Sociologia na Universidade de Leeds, no Twitter.

As lésbicas também disseram que sofreram abusos em casas de banho públicas porque eram confundidas com homens.

“Falando como uma lésbica masculina com uma namorada muito alta, o pânico nas casas de banho não me deixa segura”, escreveu @LouisatheLast no Twitter.

“Faz-me sentir que podem chamar a polícia por tentarmos usar a casa de banho sempre que estivermos em público.”

Qual a solução?

Apesar de reconhecer a vulnerabilidade das pessoas trans, Rowling não sugere nenhuma alternativa para quando precisarem de usar a casa de banho, vestiário ou abrigos para vítimas de violação.

“As pessoas trans – como toda a comunidade LGBT – continuam a precisar de acesso a abrigos, vivenciando os mesmos níveis, ou até mais altos, de violência sexual que os nossos pares”, disse English da Gendered Intelligence.

“Tentar retirar cuidados necessários a pessoas trans para impedir homens não-trans de terem acesso inapropriado é outro passo mal dado e regressivo.”

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