Até breve, professor Centeno

Depois de 20 anos de regabofe orçamental, Centeno foi o homem que vergou o défice e nos provou que, sim, o país pode e deve ser governado com contas certas. Não é coisa pouca e é por isso que esta saída dificilmente pode ser vista como definitiva

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Centeno, uma vítima política da covid-19 LUSA/TIAGO PETINGA

Apareceu na política com o ar tímido do rapaz que se esconde na última fila do canto coral. Transformou-se num ministro das Finanças com um superávite histórico na mão, um raro apoio da opinião pública na outra e um óbvio brilho europeu a sugerir a aura de um santo salvador. Não fora o acaso de sair de cena no meio de uma pandemia e da hora mais negra da economia portuguesa em muitas gerações, Mário Centeno seria um astro-rei da política. Só o prestígio que acumulou e os resultados que conseguiu o salvam do anátema dos homens que fogem do aperto. Por isso, sai apenas como um grande ministro, sem direito a lendas nem a mitos, recentrado na sua condição de homem normal. Mário Centeno é, sem dúvida, uma das histórias mais fascinantes do nosso tempo político.

Os primeiros testes com a política a sério e com as finanças do mundo real mostraram-no impreparado, vagamente iludido, seguramente ingénuo. “Nos primeiros tempos cheguei a ter medo”, disse numa entrevista ao PÚBLICO conduzida por Maria João Avillez. Não admira: o raspanete da Comissão Europeia ao primeiro programa de estabilidade que apresentou foi duro (e eficaz); a forma como geriu a história de António Domingues na Caixa foi uma prova quase cruel da sua inocência e desconhecimento dos meandros da alta política. Resistiu por pouco. Mas aprendeu. Jamais deixou o seu sorriso inseguro, mas percebeu que a política exigia ao mesmo tempo prudência, poder negocial e inteligência táctica. Percebeu também que a promessa do “virar a página da austeridade” estava condenada a tornar-se um dos mitos da legislatura: o Estado tinha de continuar a contar tostões, a apertar o cinto e a observar as regras de Bruxelas.

Foi talvez essa aprendizagem original que o salvou e salvou o primeiro Governo de António Costa. Tinha de encontrar uma fórmula capaz de conciliar um aperto brutal das contas públicas com as exigências de uma solução governativa que só se sustentava com o pagamento de facturas à esquerda – nas rendas, nas pensões, nas carreiras da Função Pública. Os mais cínicos dirão que Centeno sobreviveu a esse pau de dois bicos à custa da conjuntura internacional. É verdade. Mas também sobreviveu porque foi capaz de inventar uma vela para apanhar essa nova aragem da recuperação europeia.

Os seus esforços e a sua determinação em exercer um controlo férreo sobre as contas do Estado geraram confiança externa. O país deu conta que os medos sobre a tradicional capacidade da esquerda para o despesismo eram infundados. Centeno, apoiado sempre por António Costa, tinha descoberto a sua fórmula mágica: a confiança gera receita, a receita permite distribuição de rendimentos e os rendimentos geram crescimento e receita.

Houve momentos em que Centeno pareceu um mágico. O primeiro excedente orçamental da história democrática combinou-se bem com a sua aparente timidez na percepção dos portugueses, sempre avessos à assertividade ou à soberba dos políticos. Se até Wolfgang Schauble, o ministro das Finanças alemão que, no auge da crise do euro, o país tanto gostou de odiar, dizia que Centeno era o “Ronaldo do Ecofin”, é porque era mesmo verdade. Nessa apreciação, as maiores cativações em décadas eram um detalhe. Os mais baixos índices de execução do investimento público das actuais gerações não passavam de uma vírgula na narrativa. O país ia-se afastando do trauma da troika e precisava de um Centeno para acreditar. Todos, e até António Costa, o glorificavam, fosse por mérito ou, mais frequentemente, por necessidade.

Apenas o Presidente embirrava com ele. Pela sua presunção, talvez. Pelo brilho público que não deixava reflectir o seu, seguramente. Até no Governo os ministros esmifrados nos seus recursos, a arderem nas queixas dos funcionários sem canetas ou papel higiénico, a serem alvo diário de médicos sem meios, de enfermeiros sem carreiras ou de magistrados com chuva a cair nos processos diziam, ufanos, “somos todos Centeno”.

Na bancada do PS, sempre se ouviam deputados dizer que não podia ser, que o país estava a rebentar, que os comboios não eram mantidos e a frota de autocarros de Lisboa e Porto estava a cair de podre. Mas ouviam-se baixinho, off the record. Centeno tornara-se maior do que o partido do Governo, logo maior do que os seus soldados.

Estava por isso escrito nas estrelas que um dia Centeno seria grande demais. Que teria de chocar com o primeiro-ministro. Não é que ele alguma vez tenha insinuado qualquer ambição ao cargo. Como também não é verdade que a habilidade política do primeiro-ministro não tenha sido sempre suficiente para se alimentar do sucesso de Centeno sem erodir a sua posição de líder. Mas sabia-se que esse equilíbrio de interesses não podia durar eternamente. Só o interesse mútuo explica que Centeno tivesse transitado para a actual legislatura. O PS pagaria um preço se não usasse a sua manilha de trunfo nas eleições. Centeno foi a jogo por saber que, indo, reforçava o seu estatuto de homem imprescindível. Como o ministro disse um dia, “os números são o modo como consigo caracterizar e definir a realidade”.

No plano de retirada em glória que aí se desenhou, Centeno dava um passo decisivo. Sairia com excedentes depois de aprovar o Orçamento de 2020, com a economia a crescer, com o país reconhecido e rendido às suas contas. Depois veio a covid-19 e os seus planos borregaram. O seu desconforto no Governo tornou-se mais nítido, o incidente com os 850 milhões para o Novo Banco deu-lhe a imagem de carta fora do baralho e as suas palavras sobre António Costa Silva (“nunca falei com ele na vida”) colocavam-no nas margens da contracorrente. Tinha de sair no meio da miséria de uma crise, não na majestade das contas certas.

Pelo seu percurso, pelo que fez nas Finanças, com ou sem o favor da conjuntura, Mário Centeno não merece censura por abandonar o cargo agora. Só não tem direito ao incenso por que esperava. O que fez pelo país exige que recordemos o seu papel nas Finanças, mesmo que se tente em dar um salto para o Banco de Portugal, que sem dúvida lhe maculará a aura. Depois de 20 anos de regabofe orçamental, ele foi o homem que vergou o défice e nos provou que, sim, o país pode e deve ser governado com contas certas. Não é coisa pouca e é por isso que esta saída dificilmente pode ser vista como definitiva. Ele andará por aí e em breve vai regressar, seja em que vestes políticas for.

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