O necessário papel do mercado na retoma económica

A recuperação necessitará de um papel reforçado do nosso mercado de capitais, que permita financiar a retoma com mais capital e menos dívida no balanço das empresas, e garanta mais retorno para as famílias. Qualquer estratégia de crescimento de médio e longo prazo deverá prever instrumentos que dinamizem a relação das empresas e das famílias com o mercado de capitais.

I. Perante alguns sinais mais animadores na resposta à pandemia de covid-19, e a par com a exigente gestão da evolução epidemiológica que será necessário continuar a fazer, é chegado o momento de nos focarmos no desenho de estratégias de recuperação económica de médio e longo prazo.

Considerando os planos já revelados do Governo português, da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu, as políticas industrial, orçamental e monetária continuarão, assim se espera, a mitigar os efeitos do choque no rendimento das famílias e empresas, no emprego e no sistema financeiro. Porém, a recuperação e viabilização a prazo da nossa economia necessitarão de um papel reforçado do nosso mercado de capitais, que permita financiar a retoma com mais capital e menos dívida no balanço das empresas, e com mais retorno para as famílias.

II. Não me alongarei sobre os benefícios do mercado de capitais. Mas é reconhecido que o financiamento em mercado, sob a forma de dívida ou de capital, pode revelar-se mais barato para as empresas, de mais longo prazo, isto sem comprometer o controlo da gestão; que permite diversificar o financiamento e alargar a base de investidores; que confere maior visibilidade às empresas e estimula o escrutínio público – criando incentivos para melhores práticas de governo societário indispensáveis ao crescimento de longo prazo. É ainda um dado, retirado das últimas crises, que as empresas que se financiam em mercado exibem níveis de resiliência a choques superiores àquelas ancoradas sobretudo em financiamento bancário e com um risco menor de contágio ao sistema financeiro.

Aos investidores, o mercado pode proporcionar rendimentos mais elevados do que outras opções, com riscos adequados e níveis de proteção elevados, permitindo a diversificação da poupança e das fontes de rendimento, de forma direta, pela subscrição de obrigações e ações, ou indireta, através de fundos de investimento. Com uma maior participação no capital das empresas, as famílias poderão também beneficiar dos dividendos da retoma; reduzir os riscos de impostos futuros decorrentes dos apoios públicos; e contribuir para a recuperação dos setores económicos mais afetados e dos projetos empresariais com maior potencial de relevância para a comunidade.

III. A reflexão sobre o papel do mercado de capitais na retoma que desejamos está já na agenda europeia. A presidente da Comissão Europeia pretende criar um fundo de investimento em capital de Pequenas e Médias Empresas (PME) disperso em mercado, e nomeou um “Fórum de Alto Nível” que junta peritos europeus na análise aos desafios de relançamento da União do Mercado de Capitais [1]. Ao mesmo tempo, alguns dos mais influentes think tanks europeus têm vindo a explorar as pistas para o relançamento da União do Mercado de Capitais [2] [3] à luz dos planos da nova Comissão [4].

Em Portugal, a CMVM promoveu um estudo que está a ser desenvolvido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), com financiamento da Comissão Europeia, de identificação das barreiras ao acesso ao mercado. Os resultados do diagnóstico, que antecedem as recomendações, foram conhecidos esta semana [5]. Entre as causas do menor interesse das empresas pelo mercado figuram o receio de perder controlo das empresas, a regulação complexa e custos de entrada e de compliance.

Sem querer antecipar a reflexão que, a seu tempo, as recomendações da OCDE merecerão, existem medidas e políticas públicas a requerer ponderação.

Por exemplo, importa avaliar, no curto prazo, ajustamentos ao regime das ações preferenciais remíveis, de uso residual entre nós, ou a criação de ações com voto duplo, que permitam a entrada no capital de acionistas-financiadores com voto simples, reservando aos acionistas de longo prazo direitos de voto reforçados. Tal ajudaria a resolver o dilema da perda de controlo, ao mesmo tempo incentivando o investimento de longo prazo.

A alocação de capitais públicos, na linha do fundo idealizado pela Comissão Europeia, pode desempenhar um papel relevante, a par de apoios fiscais a despesas associadas à admissão em mercado ou à emissão de obrigações destinadas ao retalho, em linha com a proposta de ‘taxa zero’ para novos emitentes já apresentada pela CMVM ao Governo e que aguarda decisão.

Ao mesmo tempo, seriam úteis incentivos societários e fiscais ao investimento de longo prazo no capital de PME, nomeadamente através de figuras de ‘capital paciente’ – ações com voto duplo e vantagens fiscais se detidas por períodos de tempo longos. Por esta via poderia assegurar-se um mais fácil acesso das PME ao financiamento em mercado, o reforço da capitalização das empresas e um estímulo adicional à poupança individual de longo prazo como complemento de proteção social.

As empresas beneficiariam igualmente de segmentos de bolsa diversificados, com requisitos e custos de acesso mais ligeiros, ou de segmentos específicos para empresas comprometidas com padrões mais elevados de transparência, governo societário, sustentabilidade ou responsabilidade social; bem como do desenvolvimento de apoios que assegurem a produção de research sobre a sua atividade, condição essencial para os investidores as conhecerem.

O aperfeiçoamento de regimes legais, incluindo no domínio fiscal e em particular dos fundos de investimento, enquanto instrumentos de poupança e investimento crescentemente desejados pelas famílias, constitui igualmente uma oportunidade. A CMVM tem colocado a simplificação regulatória no topo da sua agenda, tendo em curso um exercício transversal de simplificação, visando a eliminação de 20% dos deveres de reporte, bem como uma revisão do Código de Valores Mobiliários, já concluída, e a revisão integral do regime jurídico dos fundos de investimento.

IV. Finalmente, não há mercado de capitais nem estabilidade financeira sem investidores confiantes no mercado e protegidos. Os investidores, tanto os institucionais como os de retalho, têm de estar no centro de qualquer estratégia de dinamização do mercado de capitais. A CMVM elegeu por isso como prioridade a promoção e controlo de boas práticas de mercado e de governance; vem sublinhando a relevância da adoção dos mais altos critérios de ética no sistema financeiro; e defende a introdução de critérios de sustentabilidade na ação de todos os intervenientes de mercado. 

Face aos desafios da crise, a CMVM continuará apostada na mitigação de riscos que possam comprometer o funcionamento e a integridade dos mercados e a defesa dos investidores. Não obstante, manterá na sua agenda, com importância acrescida, um contributo consistente para promoção de um mercado de capitais que promova uma economia assente em princípios de eficiência, sustentabilidade e colaboração entre consumidores, investidores, empreendedores e reguladores.

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