Desconfinar o urbanismo

Passando os olhos pelas ambiciosas iniciativas urbanísticas de Milão, Vilnius, Barcelona, Paris ou São Francisco, percebe-se quão irrelevantes são as respostas urbanísticas apresentadas para Lisboa e para o Porto.

Milão foi uma das cidades europeias mais afectadas pela pandemia, com consequências dantescas para a forma como as pessoas viveram os últimos meses. Ainda assim, a 24 de Abril, o município colocou a discussão pública um robusto e radical plano de desconfinamento urbanístico pedindo aos cidadãos que se mobilizassem na discussão e acrescentassem propostas.

Em Portugal, a Câmara Municipal do Porto apresentou a 29 de Maio um plano que anuncia para meados de Junho o encerramento ao automóvel de catorze ruas da Baixa e do Cento Histórico ao fim-de-semana e, até ao final do ano, a construção de mais 35 kms de rede de ciclovias ou percursos cicláveis, sem especificar onde. Em Lisboa, iniciativas como a Capital Verde ou a ZER (Zona de Emissões Reduzidas), que deveriam ter ganho um novo impulso, parecem suspensas. A estratégia do município anunciada a 20 de Maio contempla a criação de um grupo de trabalho que agilize “intervenções no espaço público que facilitem a mobilidade pedonal”, a autorização para o aumento das áreas de esplanada, o aumento da rede de ciclovias e o alargamento de passeios.

Posteriormente, a 3 de Junho (Dia Mundial da Bicicleta), Fernando Medina apresentou uma estratégia um pouco mais ambiciosa do ponto de vista da utilização da bicicleta, com algumas intenções mais interessantes do ponto de vista urbanístico. Para complementar, anunciou a criação de um fundo público para aquisição de bicicletas próprias – abdicando de lançar uma importante medida de economia circular que pudesse passar pela reparação de bicicletas antigas que tantos e tantas têm em casa e pela criação de emprego para as boas dezenas de mecânicos despedidos pelas multinacionais de partilha de bicicletas que desapareceram da cidade.

Não obstante, à data em que escrevo e num momento em que se pede às pessoas que recuperem as suas vidas diárias na medida do possível e do que é seguro, ainda nada foi implementado e tudo parece muito “poucachinho”, conforme expressão celebrizada por um antigo presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

É importante notar que as respostas urbanísticas que se derem a esta realidade pós-quarentena serão decisivas para a forma que as cidades irão tomar nos próximos anos. Entenda-se, de uma vez por todas, que o problema da habitação ou das inúmeras desigualdades e exclusões não se resolvem, de uma forma estrutural, com regulamentos ou medidas paliativas, por maior robustez financeira que aparentem. É necessário desenhar outras formas de construção de cidade, mais heterogéneas e com maior envolvimento das pessoas.

Passando os olhos pelas ambiciosas iniciativas urbanísticas de Milão, Vilnius, Barcelona, Paris ou São Francisco, percebe-se quão irrelevantes são as respostas urbanísticas apresentadas para Lisboa e para o Porto. Não obstante algumas excepções, isso também se deve a uma administração local demasiadamente hierarquizada, burocratizada e pouco aberta a estímulos externos. Isso é ainda mais agravado nos sectores no qual se decide as formas de produção de cidade particularmente vocacionados para receber, ouvir e dar cumprimento às ambições de fundos imobiliários, sociedades de advogados ou grandes promotores imobiliários menosprezando e atrasando tudo o que diga respeito a iniciativas de cidadãos, associações de moradores ou instituições de defesa do interesse público e bem comum.

Comecemos pelo transporte público. Sim, o transporte público também constrói cidade, na medida em que garante o direito à cidade de todos e todas quando, inevitavelmente, se aumentam as restrições à circulação do automóvel. Importa aumentar as condições de segurança de quem é transportado. A equação é simples: mais unidades, maior circulação, menos transportados por unidade e o estabelecimento de restrições de distanciamento físico determinadas por um trabalhador – nem motorista nem polícia – exclusivamente dedicado ao tema da segurança.

Cumprido o primeiro garante do direito à cidade, podemos seguir para acções rápidas e por proposta dos cidadãos, a partir de tantos exemplos que temos pelo mundo fora de placemaking e urbanismo táctico aumentando os passeios e áreas de esplanada, criando novas ciclovias ou reduzindo a velocidade do trânsito automóvel. É certo que estas acções devem ser robustecidas a médio e longo prazo por um plano de ruas lentas, pela estruturação de uma rede de ciclovias úteis ao fruir da cidade abarcando, designadamente, os circuitos casa-escola-trabalho e pelo aumento da acessibilidade pedonal geral. Na prática, o urbanismo e o planeamento devem olhar e aprender a partir do que se experimentou no terreno.

Por fim, é cada vez mais importante desenhar a cidade a partir de quem a vive. É fundamental que cada cidadão, residente ou trabalhador, sinta que num raio de circulação pedonal relativamente curto consegue cumprir todas as suas necessidades básicas – sobre este assunto, extensamente debatido fora de Portugal, aconselho a leitura de Doughnut Economics, de Kate Raworth, e a proposta da presidente de Câmara de Paris, Anne Hidalgo, “15-minute city”.

Concluo com um ponto que tenho vindo a defender. O futuro das nossas cidades dependerá muito do que fizermos nestes próximos meses. Desconfinar o urbanismo parece-me fundamental para que se cumpram outras abordagens ao território identificando novos e mais representativos actores no terreno. Da criação de novas formas de construção de cidade – mais cooperativas do que competitivas, mais destinadas à produção do bem público e comum do que de proveitos privados – dependerá a nossa capacidade de resposta aos problemas da saúde, da educação e da habitação que temos pela frente.

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