Concurso para directores de museus: foi dado um grande passo à frente

Precisamos de pensar as equipas, as narrativas e as políticas de aquisição, preservação, estudo e interpretação dos museus com a diversidade em mente. Isto requer uma base de conhecimentos comum, uma linguagem comum: aquela que a especialização em Museologia proporciona.

O anúncio do concurso internacional para directores de museus (e ainda palácios e monumentos) traz uma boa notícia: o requisito de os candidatos possuírem “habilitações e competências técnicas específicas na área da museologia ou na área patrimonial”.

“Finalmente!”, foi a reacção de profissionais que debatem esta questão há já algum tempo, considerando que este deveria ser um requisito obrigatório e não opcional. Sabemos que esta opção será controversa, sobretudo para quem não vê as limitações do actual paradigma, em que o lugar de direcção de um museu é reservado, na maioria dos casos, a especialistas na colecção. Mesmo assim, e porque temos a obrigação de avaliar e questionar o status quo, vemos aqui um grande passo à frente. Um passo que abre horizontes e que permite criar as condições necessárias para testar, finalmente, um outro paradigma.

A Museologia é uma ciência que conta já com muitas décadas de produção de pensamento, assim como de concepção e avaliação de práticas, tanto na área da gestão dos museus (e incluo aqui as áreas de exposição, comunicação e interpretação), como na área da gestão das colecções (com referência ao estudo das mesmas e à sua conservação). Os profissionais da área dedicam-se a um constante estudo e questionamento do papel destas organizações na sociedade, sobretudo na sua relação com os cidadãos – um aspecto fundamental, e bastante negligenciado ainda, do que é “ser museu”.

Como foi já referido, em Portugal e no estrangeiro, o lugar de direcção nos museus tem sido, geralmente, confiado a profissionais especialistas no tipo de colecção: um arqueólogo para um museu de arqueologia, um historiador de arte para um museu de arte, etc. Pessoas com excelentes qualificações e conhecimentos, sem dúvida alguma. No entanto, dirigir um museu, as suas várias áreas ou departamentos, requer um conhecimento e uma visão que vão além da colecção e que possam explorar respostas para uma pergunta que é fundamental: “Por que é que fazemos o que fazemos?”. Entrevistas dadas por vários directores de museus, a nível internacional, e comunicações em conferências revelam um desconhecimento das matérias abordadas pela ciência da Museologia. Quando não se trata de desconhecimento, verificamos uma certa desvalorização das mesmas ou mesmo incompreensão no que diz respeito ao seu impacto na gestão da organização chamada “museu”.

A museologia é uma especialização, feita por pessoas com licenciaturas em várias áreas relacionadas com a nossa herança material e imaterial. Tal como acontece noutras áreas e profissões, deveria ser considerado natural que uma pessoa que tivesse a ambição de dirigir um museu tivesse esta especialização. O que temos verificado até agora é que, quando surge como um requisito nos concursos, trata-se de um requisito opcional. Em 2015, comentávamos sobre o concurso internacional para os lugares de direcção nos museus nacionais italianos: apesar de o descritivo de funções referir sobretudo tarefas de gestão, um maior controlo sobre os orçamentos, modelos de financiamento alternativos, melhoria dos serviços e condições mais acolhedoras para os visitantes, os profissionais escolhidos auto-identificavam-se da seguinte forma: 14 historiadores de arte, quatro arqueólogos, um gestor cultural e um especialista em museus. Considerando o que se pretendia –​ e o objecto de estudo e a prática desses profissionais –, não parecia fazer qualquer sentido.

Mais tarde, em 2018, a convite da então editora do boletim do ICOM Portugal, Ana Carvalho, para escrever sobre novas competências para os profissionais de museus, apresentávamos alguns pontos que me parecem relevantes para este concurso e que poderão ajudar a entender algumas das suas fragilidades:

  • O facto de os currículos dos cursos de Museologia em Portugal não seguirem as orientações do ICTOP (Comissão Internacional do ICOM – Conselho Internacional dos Museus para a Formação do Pessoal), que prevêem matérias tanto sobre teoria como sobre a prática em museus. Assim, a maioria dos cursos existentes centra-se pouco ou nada na relação dos museus com o chamado “público” (comunicação e marketing; educação, mediação ou interpretação; acessibilidade física, social e intelectual). Sobre este ponto, as opiniões dos responsáveis pelos cursos e dos estudantes divergem, como tivemos a oportunidade de constatar num debate organizado pela Acesso Cultura em 2014. Devemos também referir aqui, como excepção, o curso da Universidade do Porto e ainda o recente convite da Universidade Nova a museólogos-profissionais de museus para integrarem o corpo docente.
  • A necessidade de, além dos cursos de museologia, haver cursos em “cultural/museum leadership” (liderança cultural ou em museus), promovidos no estrangeiro por fundações e/ou entidades culturais. Isto porque as características de liderança não são apenas atributos naturais, mas precisam de ser treinadas também. É algo que faz muita falta na área da Cultura, em geral, e dos museus, em particular.

Este concurso não vai trazer à primeira os melhores resultados. Mas não é por isso que não devemos reconhecer e procurar reforçar a importância do passo dado: o facto de se procurarem museólogos para a direcção dos museus. É urgente testar um novo paradigma e dar a oportunidade aos especialistas da área de pensar os museus no seu todo, o todo que reflectem as cinco funções mencionadas na definição do ICOM: adquirir, conservar, investigar, comunicar e expor –​ com fins de educação, estudo e deleite.

A museóloga Elaine Heumann Gurian falou-nos há quase 30 anos do “museumand’”, ou seja, do museu que não é “ou… ou” (ou colecções ou pessoas), mas do museu que é “e” (colecções e pessoas). Precisamos de pensar e dirigir os nossos museus neste sentido, precisamos de torná-los mais próximos e relevantes para as diversas pessoas que fazem parte da nossa sociedade. Precisamos de pensar as equipas, as narrativas, as políticas de aquisição, preservação, estudo e interpretação com esta mesma diversidade em mente. Isto requer uma base de conhecimentos comum, uma linguagem comum, aquela que a especialização em Museologia proporciona, de forma a promover o desenvolvimento destas instituições e uma discussão frutífera – mas não necessariamente consensual – sobre o lugar que ocupam na sociedade. Foi dado um grande passo à frente, aguardamos com expectativa os primeiros resultados.

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