Tocar ou não tocar, até quando? O desafio da psicologia actual

Tocar nos que amamos torna possível a intimidade, fazendo parte integrante dela. Logo, o alimentar dessa intimidade costuma ser sentido como revitalizador.

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O toque é fundamental — diria, determinante — para o bom e saudável desenvolvimento psíquico Keenan Constance/Unsplash

Se me perguntassem se estaria disposta, de forma permanente, a não tocar nos que amo diria que não. De todo. Não sei viver sem abraços nem beijinhos, nem tão pouco fico satisfeita apenas ao vê-los através de uma câmara de telemóvel. Das muitas restrições que nos têm sido recomendadas para travar o contágio do vírus covid-19 a do distanciamento físico e social é, sem dúvida, a que mais me incomoda. Em parte, porque pessoalmente sou do toque e da presença.

Gosto de sentir o calor do corpo do outro naqueles abraços inteiros que nos acolhem, nos seduzem, nos afagam ou nos cumprimentam com alegria, ternura e boa disposição. Gosto daqueles beijos pequeninos dados e recebidos pelas crianças, algumas vezes com as faces rosadas, cheios de encanto e magia. Gosto de ver de perto o brilho nos olhos dos outros, quando sorriem ou choram. Gosto de que me sintam bem perto. Gosto de estar perto.

Por outro lado, incomoda-me porque até aqui (e de acordo com o conhecimento da ciência psicológica) o toque é fundamental — diria, determinante — para o bom e saudável desenvolvimento psíquico. O toque de amor impresso no colo que damos aos bebés; os toques de auxílio que trocamos uns com os outros, por exemplo quando ajudamos alguém a atravessar uma passadeira; os toques trocados entre os amantes; os abraços dos amigos são albergues afectivos de transmissão de aconchego e reconhecimento que cumprem uma função essencial à vida psíquica — a função continente. A função de recepção emocional do outro, que permite a instauração e desenvolvimento da capacidade exclusivamente humana de pensar.

Dizemos em psicanálise, a capacidade de elaborar os nossos conteúdos internos, com a correspondente consciência de que existem nas suas dinâmicas, e consequente nomeação através do desenvolvimento e uso da linguagem. Wilfred Bion chamou-lhe a função de rêverie. Decorre daqui a premissa de que “primeiro sentimos, depois pensamos”! Mas, o toque é também importante no progressivo desenvolvimento interior da noção de fronteira, dos conhecidos limites. Através das trocas promovidas pelo toque (pele com pele, por assim dizer) vamos integrando a diferença que nos separa uns dos outros, construindo e desenvolvendo a estruturação da nossa identidade. É na fronteira que me distingue do outro que vou sabendo que existo como alguém (porque com e para alguém) e quem sou. Por isso, quando mais crescidos (já crianças ou jovens ou adultos) em cada abraço que trocamos nos reconhecemos.

Claro que, além desta importância desenvolvimental do toque, só possível de acontecer na vida relacional/presencial, a experiência do toque é também fonte de prazer e bem-estar independentemente do estilo, mais ou menos próximo, de cada um. Na verdade, tocar nos que amamos torna possível a intimidade, fazendo parte integrante dela. Logo, o alimentar dessa intimidade costuma ser sentido como revitalizador. 

Até aqui, muitos de nós têm feito o esforço de cumprir com as recomendações de “não tocar” nos outros, com vista à contenção epidémica. Temo-lo feito com o uso de alterações comportamentais (modulação dos comportamentos), evitando precisamente esse toque tão essencial. O eixo subjacente tem sido a segurança em termos de saúde pública — em nome da protecção da saúde física, individual e comum. Admito que não podia ter sido de outra maneira. Mas, incomoda-me pensar que a reboque dessa segurança, se comprometa um pensar mais profundo no que pode ser, afinal, a Saúde (Pública) Integrada. Isto é, a integração completa da saúde mental e psicológica na esfera da saúde pública.

Parece-me que, se continuarmos a pensar em psicologia apenas como a ciência que modula comportamentos e que, tem como tarefa fundamental a intervenção na dimensão comportamental dos seres humanos, corremos o risco de, no médio a longo prazo, descuidarmos muito do que, na verdade, concorre ou compromete a verdadeira saúde mental. Se assim não for, incomoda-me pensar que no modelo vigente até aqui, a psicologia participe para uma espécie de futuro humano de autómatos, reduzidos a seres reactivos, superficializados e instrumentalizáveis despromovidos da sua mais pura essência. O que fazer? Não sei ainda. Ninguém sabe. Permito-me, entretanto, questionar para promover o pensar. Não quero deixar de sentir para continuar a ser. Procuro estimular o saber. 

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