Choques assimétricos e pensamento único

Porque o impacto desta crise foi assimétrico, na medida em que não atingiu todos os setores/regiões de igual forma e porque nenhuma sociedade se pode desenvolver sob a orientação exclusiva do Estado, importa desenhar um plano de “desconfinamento” e de recuperação económica adaptado às circunstâncias concretas de cada setor/região que, para ter sucesso, implicará a assunção de alguns riscos.

O recente período de confinamento permitiu-me revisitar alguns dos livros que li com entusiasmo durante a minha juventude.

De entre eles, pela sua atualidade, destacaria o livro de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, publicado em 1932, que relata uma história na Londres do ano 2540 (632 DF – “Depois de Ford") e que se desenvolve a partir do contraponto entre uma hipotética civilização ultra-organizada (com o fim de obter a “felicidade” de todos os seus membros) e os habitantes de uma espécie de “reserva histórica” – semelhante às atuais reservas de indígenas – onde se preservavam os costumes “selvagens” do passado (da época do autor).

Neste livro é descrito, de uma forma muito evidente, a forma como o governo manipulava a vontade de seres humanos com o fim último de manter a ordem social.

A atualidade deste livro nestes tempos de pandemia parece evidente.

Com efeito, num momento histórico em que, relembrando as palavas de Churchill, “nunca tantos foram dirigidos por tão poucos”, todos os que ousam divergir do discurso mainstream emitido, ininterruptamente, 24 horas por dia, são, imediatamente, catalogados de “selvagens”.

Choques assimétricos

Do ponto de vista da saúde pública, a análise detalhada dos casos de infetados pela covid-19 permite-nos concluir que a distribuição geográfica da doença foi claramente distinta, tendo-se verificado que, num total de 308 municípios, apenas em 222 houve registos de infetados (dados de 21 de maio de 2020).

Para ilustrar esta assimetria, considere-se o caso de Castelo Branco, um concelho com 52.448 habitantes, que até ao dia 21 de maio tinha registado apenas seis infetados (média de 11,4 por cada 100 mil habitantes). Ao invés, no extremo oposto, considere-se o exemplo do concelho de Matosinhos com 1250 infetados, a que corresponde uma média de 718,1 por cada 100 mil habitantes.

Uma análise por região (NUTS I e II) permite retirar conclusões semelhantes. O Alentejo, com 35,3 infetados por cada 100 mil habitantes, contrasta, significativamente, com a região Norte, com um total de 462,7 infetados por cada 100 mil habitantes.

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E como é que a evolução assimétrica da pandemia, que teve como resposta medidas de confinamento simétricas, afetou a atividade económica?

No que respeita ao impacto da covid-19 nos diferentes setores de atividade, constata-se que os efeitos foram claramente assimétricos. Assim, e tendo por base o número de entidades empregadoras com pedidos de layoff à segurança social (à data de 21 de maio), os setores mais afetados serão os do Transporte e Armazenagem (24,6% em layoff total ou parcial), seguido do setor do Alojamento, Restauração e Simulares (22,2%). Em situação distinta está o setor da Agricultura, Produção Animal e Caça (0,6%) e das Atividades Financeiras e de Seguros (2,1%).

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Numa perspetiva de impacto regional, considere-se como proxy dos efeitos económicos da covid-19 a evolução do número de desempregados registados no IEFP entre fevereiro e abril de 2020. De acordo com os dados oficiais, o número de desempregados registados no IEFP terá crescido nesse período, para o conjunto do território nacional, cerca de 24,3%, com o Algarve a registar a maior taxa de crescimento (37,5%).

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Cruzando os dados epidemiológicos com os dados económicos, constata-se que a correlação entre os mesmos é muito baixa. Na realidade, e a título de exemplo, o Algarve, com uma taxa de infeção claramente abaixo da média nacional (81,3 infetados por cada 100 mil habitantes), registou a maior taxa de crescimento do número de desempregados (37,5% entre fevereiro e abril).

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Pensamento único

Como ficou demonstrado pela experiência que vivemos ao longo dos últimos dois meses, encerrar uma economia é um processo relativamente fácil e rápido. Um conjunto de leis limitadoras, “apimentadas” por soundbites de medo em horário nobre e “adocicadas” com mensagens subliminares de que a “Europa vai pagar”, foram mais do que suficientes para que muitos, por todo o continente Europeu, sentissem que “tudo vai bem e não podia ser de outra maneira”.

Contudo, e ao contrário do que muitos esperavam, para recuperar a confiança e fazer com que o circuito económico volte a funcionar não basta uma decisão por decreto.

Com efeito, porque o impacto desta crise foi assimétrico, na medida em que não atingiu todos os setores/regiões de igual forma e porque nenhuma sociedade se pode desenvolver sob a orientação exclusiva do Estado, importa desenhar, com a participação ativa de todos (no respeito pelas diferenças tão desejadas), um plano de “desconfinamento” e de recuperação económica adaptado às circunstâncias concretas de cada setor/região (plano de geometria variável), que, para ter sucesso, implicará, seguramente, a assunção de alguns riscos. 

Na realidade, em contraponto à política do pensamento único, precisamos, neste momento em que vivemos uma crise económica de dimensões históricas, de uma política de escrupuloso rigor na gestão dos recursos (mais ainda se provierem da solidariedade externa) no combate à pandemia da pobreza que aí está, com toda a sua virulência e sem a sinalização crítica dada pelo andamento das ocupações das Unidades de Cuidados Intensivos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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