Se eu brincasse como se o mundo não me visse: o retraimento social na primeira infância

Entre 10% a 15% das crianças apresentam níveis intensos e prolongados de vergonha e retraimento que as podem impedir de aproveitar oportunidades importantes para o seu desenvolvimento.

Foto
innaharlamoff/Getty Images

Tal como os adultos, é frequente que as crianças de idade pré-escolar sintam vergonha e se retraiam perante pessoas e situações novas ou com os quais estão menos familiarizadas. Geralmente, esta vergonha e retraimento iniciais desaparecem ao fim de algum tempo. Em níveis moderados, têm uma função protetora, permitindo-nos ter um comportamento social ajustado e evitar a exclusão social. 

Contudo, 10% a 15% das crianças apresentam níveis intensos e prolongados de vergonha e retraimento que as podem impedir de aproveitar oportunidades importantes para o seu desenvolvimento. Geralmente, estas crianças falam com facilidade em casa, mas escondem-se atrás dos pais quando têm de cumprimentar adultos no dia a dia. Mostram interesse em interagir com as outras crianças, mas não têm a iniciativa de se juntar a elas para brincar. Brincam de forma descontraída em casa, mas retraem-se quando têm de desempenhar atividades frente aos outros (ex., demonstrações artísticas ou desportivas) ou de participar em festas. É frequente que os pais destas crianças digam que têm “dois (duas) filhos(as) diferentes: um(a) dentro e outro(a) fora de casa” e que expressem o desejo de que elas brinquem em contexto social como em casa — como se o mundo não as visse.

Porque é que algumas crianças apresentam estes níveis mais intensos de vergonha e retraimento social? Os estudos associam o retraimento social em idade pré-escolar a uma característica de “feitio” ou temperamento que pode ser observada desde o primeiro ano de vida, sob forma de reações emocionais negativas intensas e prolongadas perante estímulos novos. Na sua génese, encontram-se fatores biológicos, nomeadamente um sistema de defesa mais sensível, situado na parte mais antiga do nosso cérebro. Apesar da influência de fatores biológicos, tal não significa que a criança e os pais tenham culpa e que nada possa ser feito. Pelo contrário, a família pode aprender e implementar estratégias que transmitam à criança que as suas características são aceites e respeitadas, mas que, simultaneamente, a incentivem a aproximar-se, passo a passo, das situações sociais que receia.

É comum que os pais se sintam frustrados ou desapontados perante os sinais de retraimento da criança e que possam ter a tentação de “empurrá-la” para as situações, especialmente quando estes sinais são confundidos com má educação ou desinteresse em contexto social. Embora nem sempre seja fácil, é importante que os pais evitem rotular a criança (ex., é tímida), corrijam as pessoas que o façam e reconheçam as suas áreas fortes (ex., capacidade de observação, perspicácia, criatividade) para que ela sinta que as suas características são aceites e respeitadas. A normalização do medo como parte da experiência humana comum e o incentivo à identificação e partilha das situações que o espoletam e dos sinais com que este se manifesta no corpo (com histórias ou filmes de animação infantis) também contribui para fomentar um ambiente familiar seguro, em que a criança se sente compreendida e apoiada.

Por outro lado, a preocupação dos pais em relação aos sinais de retraimento da criança pode levá-los a serem mais protetores, dizendo-lhe o que fazer ou falando no seu lugar. Embora tenham a melhor das intenções, estas respostas parentais não ajudam a que a criança desenvolva a confiança necessária para enfrentar, passo a passo, os seus medos. No dia a dia, a participação ativa em pequenas decisões ajustadas à idade e a brincadeira livre liderada pela criança ajudam a promover a independência e confiança em contexto seguro. Estas conquistas servem de base para que, a pouco e pouco, sem “empurrar” a criança demasiado “depressa”, os pais criem pequenos desafios que ela é capaz de enfrentar (ex., manter-se ao lado dos pais, sem se esconder, perante adultos do quotidiano). Antes dos desafios, é importante que os pais salientem as vantagens de experimentar as coisas, mesmo que tenhamos medo delas (ex., ser ainda mais corajosa do que já é, fazer coisas importantes), transmitam à criança confiança de que é capaz e a preparem para o que vai acontecer, utilizando, por exemplo, o jogo de faz-de-conta.

Dar atenção e encorajar todas as conquistas da criança, persistir na prática dos mesmos desafios até se tornarem muito fáceis para ela e transmitir-lhe uma atitude de “não há problema” quando as coisas correm menos bem são ingredientes-chave para que ela possa aprender a brincar e a aproveitar as oportunidades do mundo, quando este tem os olhos postos nela.


Maryse Guedes, Investigadora do ISPA; Centro da Criança e da Família, William James Center for Research


A autora segue o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção