Na Internet, há bibliotecas com milhares de livros para ler

Sabe-se pouco sobre os hábitos de leitura digital das crianças e jovens em Portugal, mas há cada vez mais sites, plataformas e apps móveis dedicadas ao mundo da ficção.

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Esta semana, a autora da série Harry Potter decidiu começar a publicar um novo livro infantil online para crianças. Todos os dias, à mesma hora, surge um novo capítulo no site do conto de fadas que leva os mais novos a um reino de magia, com monarcas e cavaleiros e um monstro misterioso conhecido como “o Ickabog”.

Apesar de o livro estar online, não há quaisquer imagens ou vídeos a ilustrar os pequenos capítulos: a ideia é que sejam os próprios leitores a desenhar as paisagens e personagens preferidas, que podem ser enviadas ou partilhadas pelos pais nas redes sociais. As melhores farão parte das futuras edições impressas do livro, levando as crianças a continuar a ler, numa altura em que muitas ainda estão a ter aulas em casa e têm de passar mais horas em frente ao ecrã.

Os primeiros capítulos estão disponíveis em inglês, mas J.K. Rowling diz que pretende disponibilizar mais traduções em breve para que a versão digital dos seus contos possa chegar a mais crianças. É um formato pouco usual dentro do espaço infanto-juvenil, mesmo entre uma geração colada ao ecrã.

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Os primeiros capítulos estão disponíveis em inglês J.K Rowling

“Da experiência que tenho, os miúdos passam cada vez mais tempo online, e, por isso, também lêem muito online, mas é um tipo de leitura diferente”, começa por dizer ao PÚBLICO o pedagogo Renato Paiva, director da Clínica da Educação, em Lisboa. “Quando pergunto às crianças se lêem, falam de jogos, ou blogues”, continua o pedagogo, admitindo, no entanto, que “faltam estudos aprofundados sobre os hábitos digitais de leitura dos mais novos”.

Sabe-se que as versões digitais dos livros infantis não são uma opção popular. Tanto a Porto Editora como a Leya dizem que as vendas de ebooks no segmento infantil e infanto-juvenil são pouco representativas. Experiências feitas com realidade aumentada — em que se usa um tablet ou telemóvel para interagir com as páginas de um livro, dando vida aos personagens — tiveram pouca atracção em Portugal.

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Versões de livros com realidade aumentada têm pouca tracção em Portugal DR

Diana Pinguicha, professora de Inglês do primeiro ciclo do ensino básico, nos Olivais, tem outra perspectiva. “É preciso mostrar que também se pode ler online. Há crianças que podem não procurar livros, especialmente quando há tanta coisa para ver online ou na televisão, mas se lhes levarmos as histórias, e eles gostarem, eles lêem”, sublinha a docente de 31 anos.

É hábito usar a parte final das suas aulas para pôr os seus alunos dos 3.º e 4.º anos a ler pequenas histórias publicadas no Webtoon, uma plataforma que disponibiliza histórias aos quadradinhos (em inglês, francês, espanhol, chinês, tailandês e indonésio), que são actualizadas semanalmente.

“Procuro as que estão em inglês. Além de trabalharem a língua, ganham o hábito de ler. E como sabem que arranjo mesmo livros, já me pedem histórias específicas. Alguns já lêem capítulos do Harry Potter, mas histórias com piratas aos quadradinhos também são muito populares”, continua Diana Pinguicha.

Desde adolescente que a professora vê o mundo digital — com ebooksapps de banda desenhada, sites dedicados à escrita amadora, ou plataformas de ficção escrita por fãs (a chamada fanfiction) — como uma boa forma de desenvolver hábitos de leitura e escrita. Especialmente para quem domina a língua inglesa.

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Excerto de Closely Knit, um webtoon de Mariana DiMercurio

Há mais de dez anos que também participa no Nanowrimo, sigla de National Novel Writing Month, um concurso à escala global que desafia internautas a partir dos 16 anos a escreverem 50 mil palavras em Novembro. No grupo português do Facebook, é comum encontrar pessoas que dizem que também cresceram a ler online.

“Participei pela primeira vez com cerca de 17 anos”, lembra Rafaela Ferreira, uma das responsáveis do grupo português, que hoje tem 28 anos. “Há pessoas que entram no grupo com 15, 16, 17 anos, mas também temos pessoas muito mais velhas. Torna-se um ponto de partilha, com um ambiente descontraído em que não há mal em dizer: ‘Nunca li nada a não ser Harry Potter. O que há para mim?’”, explica. “E há um mundo de livros online.”

“Prateleiras” variadas

Além dos tradicionais ebooks, ou plataformas como o Webtoon, há aplicações móveis como a Manga Toon, muito populares no mercado asiático, que dividem livros inteiros em pequenos episódios semanais. Ao subscrever, recebe-se um novo capítulo no telemóvel todas as semanas. Fãs de clássicos, por sua vez, podem aceder ao Project Guttenberg, com uma versão em português que junta mais de 38 mil livros revistos por editores. Já sites como o Bookfunnel dão acesso a versões iniciais dos livros de alguns autores que procuram opiniões dos fãs antes de os publicar oficialmente.

E há o Wattpad, uma plataforma online que inclui mais de 30 milhões de livros em 50 línguas (alguns pagos, muitos gratuitos) que passam frequentemente despercebidos. As prateleiras do site juntam clássicos da literatura, de Jane Austen e Hermann Hesse, ao lado de pequenos poemas e histórias escritas pelos utilizadores. Histórias de fãs de Harry Potter, com versões alternativas ou continuações das histórias, estão entre as mais populares.

Embora 79% do conteúdo esteja inglês, em Janeiro o português era a terceira língua mais lida (2,2%), com cerca de 685 mil livros disponíveis.

“Tende a existir algum estigma com estas plataformas porque há histórias que são muito simples, com erros, escritas pelos próprios jovens. Só que não faz sentido criticar, quando o objectivo é motivar a leitura”, nota a professora Diana Pinguicha. “Pedir a alunos para escrever versões alternativas de livros que lêem nas aulas também é um bom exercício para os pôr a ler a história original.”

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O Wattpad também organiza concursos para destacar alguns dos livros preferidos no site DR

Com milhares de utilizadores, estas plataformas também podem dar informação valiosa a investigadores sobre os hábitos de leitura dos jovens. Um estudo publicado em Janeiro, por uma equipa de investigadores da Suíça e da Itália, por exemplo, nota que os jovens na plataforma tendem a preferir histórias com personagens que não recorrem à força e têm de reagir a situações de violência e ameaças com comentários inteligentes.

“Contrariamente à famosa queixa de que os jovens não lêem, [o Wattpad] mostra o detalhe com que os adolescentes em todo o mundo escrevem, lêem e comentam textos online”, destacou Federico Pianzola, investigador da Universidade de Milão-Bicocca numa entrevista sobre o estudo. “Há provas de que ler em ecrãs diminui a compreensão de um texto, mas exemplos como o Wattpad mostram que não se deve culpar a tecnologia por si só porque, com o conteúdo certo e a motivação certa, os telemóveis podem ser boas formas de nutrir uma paixão pela leitura”, nota Pianzola, que diz que o importante é dar aos jovens “um espaço seguro onde podem encontrar histórias que revêem no seu o dia-a-dia”.

Algumas narrativas que começam no site já foram adaptadas para séries online, como The Kissing Booth, da Netflix.

Nem todas as crianças têm acesso à Internet, lembra, porém Catarina Vilaça, professora dos 2.º e 3.º ciclos na zona de Loures. “Não me lembro de ter alunos que lessem no telemóvel ou tablet. A ideia de que os miúdos têm todos acesso a muitas tecnologias [não corresponde à realidade], depende da zona de Portugal. Por cá, ainda não é uma realidade”, partilha a professora, que reconhece o potencial no digital mas vê as bibliotecas como o principal ponto de encontro entre crianças e livros.

Papel ainda é o rei 

Entre os mais pequenos, o papel continua a ter primazia, com estudos que mostram que ler em formato físico estimula mais a atenção. “As crianças verbalizam menos detalhes sobre a narrativa e não se lembram tão bem da ordem da história quando lêem em formato electrónico”, observa Tiffany Munzer, pediatra no Hospital Pediátrico da Universidade do Michigan, nos EUA, nas conclusões de um pequeno estudo sobre a relação entre crianças e livros electrónicos que foi publicado em 2019. Uma das hipóteses é que os pais interagem menos com as crianças quando há elementos multimédia, como gravações das personagens a falar. Outra análise a 40 crianças com quatro anos publicada em 2018 no European Journal of Psychology of Education nota que livros electrónicos podem ser uma distracção, mesmo que não tenham muitos elementos multimédia.

É uma opinião partilhada pela Leya. “Entre as crianças com menos de 13 anos, o livro físico ainda é o meio preferencial porque tem a vantagem de oferecer diferentes texturas e formas de interagir com a história com destacáveis e desdobráveis”, nota Pedro Sobral, director-geral das publicações Leya e vice-presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL). “Ainda há poucas opções [de publicações digitais] adequadas para os mais novos.”

Somam-se problemas de miopia associados ao uso precoce de ecrãs digitais. Em 2019, por exemplo, um estudo na Irlanda mostrou que mais de três horas de tempo de ecrã por dia aumentava as probabilidades de miopia nas crianças em idade escolar. A tendência repete-se noutros países, com a percentagem de crianças com miopia entre os seis e os 19 anos a aumentar desde 2000 na Europa e na América do Norte. Actualmente, ronda os 40%.

Leitores digitais, como o Kindle, tentam resolver a situação através de ecrãs com tinta electrónica, que não emitem luz e não são cansativos para os olhos como um ecrã convencional.

“É preciso moderação”, resume o pedagogo Renato Paiva, reconhecendo que há espaços e ferramentas digitais que podem estimular a leitura. “Ler em inglês online ajuda no domínio da língua, fóruns podem ajudar os jovens a encontrar outros com hábitos de leitura semelhantes, e há jogos em que é preciso ler para interpretar um desafio”, enumera. “É preciso mais investigação na área para perceber o tipo de hábitos de leitura digitais entre crianças e jovens. Ainda se fala pouco sobre o tema em Portugal.”

Para a professora Diana Pinguicha é preciso, acima de tudo, mostrar aos jovens que há opções online: “Se virem que podem usar o tempo que passam online a ler, e encontrarem boas histórias, vão fazê-lo”, repete.

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