Sem confinamento, Portugal teria tido três vezes mais doentes nos cuidados intensivos

Investigadores da Escola Nacional de Saúde Pública concluíram que as medidas decretadas “precocemente” e a sua aceitação por parte da população permitiram uma redução dos números da pandemia em Portugal nos primeiros 15 dias de Abril.

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Portugal tinha até esta quarta-feira 66 pessoas internadas em unidades de cuidados intensivos Manuel Roberto

Num cenário em que o estado de emergência não estivesse a vigorar em Portugal nos primeiros 15 dias de Abril, as unidades de cuidados intensivos dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) teriam tido de atender, entre o dia 1 e o dia 15 desse mês, uma “avalanche” de 748 doentes graves com covid-19 (a doença causada pelo novo coronavírus) — este valor corresponde a três vezes mais do que os 229 cidadãos que efectivamente precisaram deste tipo de cuidados.

Além disso, as medidas de confinamento adoptadas — como a restrição aos movimentos dos cidadãos, a imposição de limites para a realização de reuniões, a suspensão de serviços não essenciais e a promoção de teletrabalho — contribuíram para que, no período analisado, Portugal registasse menos 5568 casos de covid-19 (o que corresponde a menos 25%), menos 146 mortes (menos 25%) e menos 519 internamentos em unidades de cuidados intensivos (menos 69%) do que seria de esperar, se não tivesse sido decretado o estado de emergência de 19 de Março a 2 de Abril e, novamente, de 3 a 17 de Abril.

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Estas são as principais conclusões de um estudo conduzido por um grupo de investigadores da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) que analisou não só o impacto do confinamento imposto pela pandemia de covid-19 em Portugal, mas também o timing e a adesão dos portugueses ao isolamento social.

Para obter estes números, a equipa analisou, por um lado, os dados do primeiro mês de epidemia, Março, e, por outro, o impacto que as medidas impostas em meados desse mês tiveram passados 15 dias. “Projectámos o que teria acontecido até ao dia 15 de Abril sem as medidas de isolamento e comparámos com o que realmente aconteceu. O que concluímos é que houve um achatamento da curva dos casos e dos óbitos. Se o que vimos em Março tivesse continuado em Abril, teríamos números mais altos em vários indicadores. Felizmente, não foi isso que aconteceu, porque as medidas de confinamento começaram a ter o seu impacto”, explica ao PÚBLICO Alexandre Abrantes, docente na ENSP e um dos autores do estudo.

O grupo escreve ainda que os valores observados são os publicados pela Direcção-Geral de Saúde (DGS) nos seus boletins diários e que os valores esperados para o número de mortes diárias, casos e internamentos foram estimados “com base em modelos de alisamento exponencial aplicados ao período até 31 de Março”.

No mesmo quadro traçado pelos investigadores, as 528 camas de cuidados intensivos de que o SNS dispunha na altura poderiam não ter sido suficientes para albergar o número de doentes que entravam nos hospitais todos os dias, como aconteceu em Itália e em Espanha, por exemplo. “A acção antecipada deu tempo para o SNS adquirir equipamentos de protecção, aumentar a capacidade de testar e lidar com o aumento da procura hospitalar e de cuidados intensivos causada pela pandemia”, conclui o grupo.

Alexandre Abrantes aponta três razões para o cenário português ter sido tão diferentes de outros países europeus muito afectados pela pandemia. “A primeira é que tivemos 15 dias de antecedência. As medidas do lockdown foram tomadas muito cedo e o povo português cumpriu muito mais o isolamento do que os italianos, por exemplo. Por outro lado, internámos muito menos pessoas do que os italianos e espanhóis, que começaram por fazê-lo com quase toda a gente. Aqui, muitos dos casos foram acompanhados em casa e os hospitais não tiveram aquela pressão súbita. Em terceiro lugar, nos 15 dias que tivemos para ‘preparação’, foi possível realocar camas para os doentes covid-19 e, no período em que foram precisas, as mais de 500 camas disponíveis foram suficientes para os absorver, algo que não aconteceu com outros países”, relata o professor.

Portugueses aderiram ao confinamento

No mesmo estudo, a equipa revisita as alturas em que vários países europeus começaram a fechar-se, e refere que Portugal “actuou cedo”, adoptando medidas de contenção e de mitigação da pandemia num momento em que a situação epidemiológica era “bem menos” complicada do que a de Espanha, Itália e do Reino Unido, quando tomaram medidas equivalentes.

“Portugal decretou o lockdown da vida económica e social num momento em que registava 62,4 casos de covid-19 por milhão de habitantes e praticamente não registava óbitos”, referem os investigadores. “A Espanha e a Itália tomam as mesmas medidas num momento em que registavam 123 e 122 casos por milhão de habitantes, respectivamente. O Reino Unido só veio a impor medidas muito mais tarde, quando já contava 720 casos por milhão de habitantes e já registava 9,3 óbitos por milhão de habitantes.”

E, para lá das medidas “precoces”, o estudo revela que a população portuguesa aderiu de forma rápida ao confinamento, reduzindo a mobilidade efectiva para uma grande parte das actividades da vida diária, incluindo os campos do “retalho e lazer”  (menos 83% do que antes do primeiro período de estado de emergência),​ “parques e afins” (menos 80%) e “transportes” (menos 79%) — os dados para as contas efectuadas pelos investigadores foram disponibilizados pela Google e Apple, que fazem a comparação da mobilidade durante o período de estudo com uma linha de base.

Os espanhóis também aderiram cedo e de forma efectiva às medidas de contenção e mitigação, mas os italianos demoraram duas semanas a adaptar-se ao confinamento, “possivelmente devido a uma menor percepção de risco, já que foram o primeiro país da Europa com grande impacto” da doença, sugerem os autores do estudo.

Os especialistas afirmam que, de modo a prever como se poderá comportar a evolução da doença nos próximos tempos, é necessário que o sistema de vigilância epidemiológica seja capaz de “detectar precocemente um aumento do número de casos acima do nível esperado em cada semana, em cada município, ou mesmo por freguesia, no caso de grandes municípios”. Ainda na visão dos especialistas, é também fundamental iniciar um programa de testes serológicos, com início em populações específicas e que depois poderá ser progressivamente alargado a amostras representativas de diferentes populações, para que se consiga “seguir o estado imunitário da população”.

Portugal conta, nesta quarta-feira, 1356 vítimas da covid-19 e 31.292 casos confirmados. Estão internadas 510 pessoas e, dessas, 66 estão em unidades de cuidados intensivos, segundo o último balanço da DGS.

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