As aplicações de contact tracing no combate à covid-19: haverá ainda lugar para a esperança?

As aplicações de alerta e de rastreio de contactos podem constituir um instrumento valioso para informar e alertar os utilizadores que tenham estado na proximidade de uma pessoa infetada.

A crise de saúde pública causada pela pandemia da covid-19 acrescentou ao léxico corrente uma expressão nova, com conotação de esperança: o digital contact tracing.

A utilização de aplicações para telemóveis inteligentes como estratégia complementar ao labor exaustivo e minucioso de investigação e vigilância epidemiológica desenvolvido pelos especialistas de saúde pública apresenta um potencial relevante na identificação de contactos de proximidade com pessoas infetadas, na contenção da propagação da doença e na interrupção de cadeias de transmissão.

As aplicações de alerta e de rastreio de contactos podem constituir um instrumento valioso para informar e alertar os utilizadores que tenham estado na proximidade de uma pessoa infetada, em locais públicos ou em outras circunstâncias em que a identificação seria difícil ou impossível pelos meios tradicionais.

A informação massiva que as tecnologias e dados digitais proporcionam, combinada com o auto isolamento, o seguimento e a realização de testes de despistagem, pode permitir às autoridades de saúde um controlo mais rápido e eficaz da disseminação da infeção (no limite, a adoção de medidas de confinamento seletivo), com virtualidades na elevação do patamar de segurança na reabertura da sociedade, na liberdade de circulação entre diferentes países e regiões e na recuperação da economia.

Num processo paralelo ao dos esforços para encontrar um medicamento ou uma vacina, multiplicaram-se na Europa grupos de trabalho e projetos, liderados por agências governamentais, universidades, centros de investigação e empresas privadas. Rapidamente se concluiu que qualquer solução, para responder à emergência sanitária e não criar riscos acrescidos, teria de inovar sem verdadeiramente o fazer, isto é, teria de ser concebida a partir de meios já existentes e suficientemente estudados e conhecidos.

A tecnologia Bluetooth (que permite medir a intensidade dos sinais emitidos para determinar se dois telefones inteligentes estiveram suficientemente próximos para que os seus utilizadores tenham transmitido o vírus) foi apontada como a única compatível com a muralha protetora da privacidade e dos dados pessoais resultante da apertada malha multinível tecida pelos princípios e regras consagrados no RGPD, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na Convenção 108 do Conselho da Europa e na Diretiva “ePrivacy” e reforçada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

Anonimização, liberdade de decisão, limitação da finalidade, minimização, controlo, transparência, responsabilização e segurança, pilares estruturantes do direito à autodeterminação informacional, são imperativos sublinhados na Recomendação da Comissão Europeia, nas guidelines do Comité Europeu para a Proteção de Dados e nas Declarações do Conselho da Europa produzidas ao longo do mês de abril.

O biopoder de separar os sãos dos doentes e de determinar quem está em risco é colocado perante um modelo de controlo que, apesar das muitas garantias, assume a liberdade de ir e vir em troca do rastreamento e da vigilância em tempo real.

Às limitações técnicas do Bluetooth, com diminuta sensibilidade e risco de falsos positivos e negativos, somam-se as limitações no acesso à tecnologia, a suscitar questões de discriminação e falta de equidade, as dúvidas sobre a segurança, a minar a confiança fundamental para a necessária adesão massiva de utilizadores, as inflexões e falta de consenso entre os países sobre o modelo (centralizado ou descentralizado) a adotar, que criam dúvidas sobre o papel e poderes das autoridades de saúde, e ainda as dificuldades de interoperabilidade entre diferentes aplicações e nas movimentações transfronteiriças de pessoas. Limitações, dúvidas e dificuldades de magnitude suficiente para pôr em causa a eficácia do prometido digital contact tracing. Haverá ainda lugar para a esperança?

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