Jornalismo por 30 dinheiros

Perante este “bodo aos pobres” lançado das varandas de S. Bento às mendicantes empresas e grupos de media, pergunta-se: justificar-se-ão os receios quanto à intenção do Governo as querer influenciar nas suas decisões? E de que forma materializaria tal intenção? E serão esses mesmos media tão facilmente manipuláveis?

Subitamente, o receio de que o jornalismo tenha ficado refém do Governo virou uma preocupação generalizada. Bom sinal, se for um sintoma da vontade de fazer um debate sério, urgente e necessário acerca do papel nuclear que uma boa e livre informação jornalística desempenha na saúde da democracia que tanto veneramos.

O balão de oxigénio dado por estes dias a um conjunto de empresas de media, num total líquido da ordem dos 11,2 milhões de euros sob a forma de publicidade institucional, tem merecido ampla discussão, ora diabolizando o modelo de apoio escolhido, ora criticando a ausência de transparência nos critérios de atribuição das verbas, ou, ainda, acusando o Executivo de falta de uma verdadeira política de apoio ao setor.

Perante este “bodo aos pobres” lançado das varandas de S. Bento às mendicantes empresas e grupos de media, pergunta-se: justificar-se-ão os receios quanto à intenção do Governo as querer influenciar nas suas decisões? E de que forma materializaria tal intenção? E serão esses mesmos media tão facilmente manipuláveis? E é possível manipular todos os media com a mesma simplicidade e certeza com que se diz que isso vai suceder?...

Imaginemos, por hipótese académica, que sim, que tudo isso seria viável. Que a Impresa (dona da SIC e Expresso) vai ter de retribuir em chá e simpatia os 3,4 milhões que recebeu; que a Media Capital (TVI, Rádio Comercial) terá de ser, doravante, muito atenciosa e dócil para quem generosamente lhe deu 3,3 milhões de euros; que a Cofina (CM, CMTV, Record, Sábado e Jornal de Negócios) saberá retribuir em favores e serviços os 1,6 milhões em boa hora oferecidos. No campo das hipóteses, achar-se-á possível que tudo isso aconteça — no mínimo o risco acredita-se que existe, dada a dependência, como se tem dito, das ditas empresas (e apenas referimos as que receberam mais) face ao poder político, aqui representado pela figura do Governo.

Procuremos, agora, olhar o cenário, não a partir da perspetiva política, mas da económica. A Media Capital encerrou o exercício de 2019 com prejuízos de 54,7 milhões de euros; a Impresa, apesar do lucro de 7,8 milhões com que terminou 2019, tinha o valor da dívida remunerada líquida nos 166,4 milhões de euros; e a Cofina, embora registando um lucro de 7,2 milhões de euros, possuía uma dívida líquida nominal superior a 40 milhões de euros. Pergunta tão lógica quanto evidente: não haverá, no plano das hipóteses, a mesma tentação de alguns dos credores ou financiadores das operações daqueles grupos quererem influenciar, em seu proveito, a respetiva agenda noticiosa ou decisões editoriais das frágeis empresas? Ou haverá, como na conhecida rábula do “banco bom” e “banco mau”, os financiadores bons e os apoiantes maus e oportunistas, a publicidade boa e a publicidade má? A influência boa dos interesses económicos e financeiros, e a influência pérfida e soez de tudo quanto cheira a público? Ver o assunto de forma maniqueísta não ajuda muito. Querem um exemplo?

Em 2015, José António Saraiva, diretor do Sol, confirmava-me, em entrevista para o livro A corrupção política vista por jornalistas e políticos (LABCOM.IFP), a propósito das pressões que o seu jornal teria sentido no âmbito de alguma investigação — que sim, elas existem, e “são muito fortes”. E passa a detalhá-las, sublinhando que as tais pressões “chegaram por várias vias: sobre um nosso subdiretor; sobre o BCP como acionista; sobre os acionistas angolanos da Newshold para não investirem no Sol, em cortes de publicidade, etc., etc., etc.” (...) Houve pressões do género: desbloqueamos uma dívida vossa se o jornal não publicar o tema X” (p.115).

Tais casos, segundo JAS, ocorreram durante o consulado de José Sócrates. Daí para cá, o que mudou? O que o exemplo referido nos mostra e que, infelizmente, bem conhecemos e sentimos na pele, é a habitual promiscuidade portuguesa entre a política e os negócios. Há muito que sabemos que quem se mete com essa gente, apanha. O jornalismo não é exceção. E é este que tem de ser defendido e preservado, independentemente dos interesses das empresas e seus acionistas, independentemente dos múltiplos negócios alheios ao jornalismo que essas mesmas organizações desenvolvem.

O que está, pois, em causa é o jornalismo. Logo, se é ele que serve de alarme à crise incendiária que consome as empresas, e é também utilizado como argumento principal para os apoios agora dados, terá de ser ele a primeira vítima a ser salva. Ora, o presente balão de oxigénio governamental não visa apoiar o jornalismo — é um suporte de vida às empresas de media, o que é diferente. O atual debate revela, todavia, uma abertura antes inexistente, para encarar e discutir as saídas para um problema, em que os apoios oficiais façam parte da solução.

Em The death anf life of American journalism (2010), McChesney e John Nichols já falavam disso, preocupados com o cenário do jornalismo, no seu país. Entre as seis propostas então avançadas, destacamos duas: 1) o governo precisa desempenhar um papel criativo e sustentado, sob pena de a crise no jornalismo assumir proporções inaceitáveis; 2) a aplicação, por parte do governo, de estratégias viáveis que subsidiem uma imprensa livre, sem com isso ameaçar a oposição ardente e antiga da América a qualquer tipo de censura oficial (p. 214).

Medidas oficiais criativas e sustentadas que constituam um verdadeiro suporte ao jornalismo — eis, em síntese, o que se deseja. Importa, assim, distinguir, entre os eventuais incentivos, aqueles que têm em vista apoiar a prática e desenvolvimento do jornalismo, e os que são meros subsídios às empresas. Não é a mesma coisa. Significa, portanto, que se o governo deve ser criativo nas formas e transparente nos critérios, a mesma criatividade, transparência de processos e comprometimento para com o jornalismo — porque é isso que está em causa — deve ser exigido a quem se candidata aos incentivos. Neste contexto, deveria, ainda, fomentar-se com apoios concretos a constituição de novos projetos jornalísticos fora dos grandes centros, em que jovens licenciados, jornalistas em início de carreira ou desempregados, ou outros que procurassem fora de Lisboa e Porto opções novas para o seu percurso fossem os principais destinatários.

Pergunte-se às dezenas de jornalistas portugueses que trabalham em Macau, se sentem a sua liberdade de informar ameaçada, só porque o governo local atribui um subsídio mensal, definido por lei, aos jornais de língua portuguesa e chinesa (por serem as línguas oficiais). É desejável, portanto, que o debate se centre no exercício do jornalismo, em torno de projetos jornalísticos concretos, isto é, no desempenho profissional qualificado de um bem que está protegido pela Constituição, e se fale menos de negócios, sem prejuízo de sabermos que o jornalismo também o pode ser, e que os cidadãos também têm aqui um papel a desempenhar.

Numa célebre reportagem do extinto Washington Herald, um ex-combatente na I Guerra diz a certa altura: “— qual o preço da glória? dois olhos, duas pernas, um braço: 12 dólares por mês”.

O que há que evitar a todo o custo, sabendo que sempre haverá vozes dissonantes e críticas, é que o preço da liberdade de informar e a sobrevivência do jornalismo, na ótica de uma desejável e transparente política para o setor, encare os apoios como uma esmola a vítimas amputadas, a quem se lhes atira 30 dinheiros para as calar.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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