Cultura para Todos

Se os 30 milhões de euros agora anunciados para as autarquias investirem em programação cultural saem desta linha e isso acontece por falta de execução de um programa social e culturalmente responsável, é uma vergonha.

No passado dia 22 de maio, assistimos ao anúncio, pelo primeiro-ministro, da criação de um fundo de 30 milhões de euros para apoiar as autarquias locais em sede de programação cultural. Se a possibilidade de reforço dos orçamentos autárquicos para a política cultural, nesta fase difícil que vivemos, pode ser uma medida relevante para responder à crise profunda que o sector cultural atravessa, este anúncio merece uma reflexão.

É que, passados três meses do início da crise pandémica, o Governo não foi capaz de enunciar uma resposta ágil para o sector da Cultura, como seria a criação de um fundo nacional de emergência social para responder às especificidades do sector, onde uma parte muito significativa dos seus agentes trabalha a recibos verdes e de forma intermitente; como seria apoiar, diretamente, o meio cultural, através de encomendas, contratos e programas com dimensão adequada à situação que vivemos. De onde vêm os 30 milhões de euros que o Governo pretende entregar às autarquias locais para programação cultural, como e quando vão ser operacionalizados?

Certamente, as verbas vêm da reprogramação de fundos europeus, no âmbito da Iniciativa de Investimento de Resposta à Crise do Coronavírus (CRII), que permite aos Estados-membros da União Europeia reprogramarem a utilização de fundos e, inclusivamente, financiamentos a 100%. Face à declaração da ministra da Coesão Territorial ao Expresso, no passado dia 16, de que “os fundos para dinamizar eventos culturais, animação turística e outros projetos inovadores de inclusão social” iriam ser cortados, não restam muitas dúvidas de que os 30 milhões de euros que o primeiro-ministro anunciou têm origem no corte do programa Cultura para Todos. Este programa teve atrasos sucessivos na programação e na execução, mas estava em fase de contratação com uma série de entidades culturais, o que é agora posto em causa, conforme sinalizam várias plataformas representativas do sector cultural.

O que é o programa Cultura para Todos?

Nos idos de 2014, enquanto membro do Governo com a tutela da Cultura, integrava a CIC – comissão interministerial de coordenação do Portugal 2020, que preparou a operacionalização do Acordo de Parceria adotado entre Portugal e a Comissão Europeia para o período 2014-2020.

Foi na CIC que propus a criação do programa a que chamei Cultura para Todos. A razão para a sua criação era simples: Portugal é um país com muitas desigualdades, sociais, económicas, geográficas. O acesso à Cultura – à criação, à fruição, ao património – é mais difícil em certas regiões do país, em certas áreas das cidades, para certos cidadãos. A criação de um programa com fundos comunitários para beneficiar os mais desfavorecidos era um imperativo. Num país democrático, a cultura tem de ser democrática. Foi nesse sentido que definimos as seguintes prioridades para este programa:

  1. Promover a aquisição e o desenvolvimento de competências básicas, profissionais, sociais e pessoais, junto de grupos excluídos ou socialmente desfavorecidos, através da dinamização de práticas artísticas e culturais, tendo em vista a aquisição de capacidades que contribuam para uma maior integração;
  2. Promover a igualdade de oportunidades na fruição cultural, através da remoção de barreiras de comunicação e de programação nos espaços, equipamentos e eventos culturais, facilitando a participação cultural de pessoas com deficiências e incapacidades, com mobilidade reduzida e/ou de grupos excluídos ou socialmente desfavorecidos;
  3. Fomentar o acesso de novos públicos à cultura; 
  4. Contribuir para a eliminação de discriminações, assimetrias económicas, sociais, culturais e territoriais, através de práticas artísticas e culturais;
  5. Contribuir para o aumento dos sentimentos de pertença do indivíduo na comunidade através da promoção da ética social e da participação cultural e artística, visando o combate à exclusão social mediante o desenvolvimento de intervenções inovadoras e de respostas integradas no âmbito da infância e juventude, população idosa, pessoas com deficiência, família e comunidade;
  6. Estimular a disponibilização e a divulgação de conteúdos culturais digitais acessíveis a pessoas com deficiências e incapacidades e/ou a grupos excluídos ou socialmente desfavorecidos.

Creio que este conjunto de objetivos do programa Cultura para Todos é consensual.

A gestão do programa foi entregue ao Programa Operacional Inclusão Social e Emprego (POISE) e aos Programas Operacionais Regionais. O objetivo era ter uma componente nacional para as ações e uma componente local. Para o efeito, obtive a promessa do meu colega de Governo da área do desenvolvimento regional, de alocação de 50 milhões de euros. A primeira abertura de candidaturas ocorreu em Junho de 2015. Não sei que verba efetiva ficou alocada ao programa com os governos de António Costa e que alterações pontuais se fizeram nos objetivos e processo de candidatura. Mas se os 30 milhões de euros agora anunciados saem desta linha de programação e isso acontece por falta de execução de um programa social e culturalmente responsável, é uma vergonha.

Um governo que se diz socialista não foi capaz de implementar e executar, nos últimos cinco anos, um programa cultural e socialmente prioritário, e agora, em vez de encontrar soluções para a situação, retira o dinheiro para este efeito? Não quero acreditar que assim seja.

Tal como muitos agentes culturais, espero esclarecimentos do Governo nesta matéria.

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