Recruta dos Comandos que morreu estava “num estado lamentável”, garante colega

Advogado acusa tribunal de permitir mentiras a testemunha que aponta “exageros” no curso 127 dos Comandos. Socorrista fotografou e fez comentários desagradáveis sobre o estado de Hugo Abreu.

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Miguel Manso

Quando chegou à enfermaria no Campo de Tiro de Alcochete, Hugo Abreu estava “num estado lamentável”. As palavras são do ex-recruta Filipe Emídio, uma das últimas testemunhas da acusação e uma das mais frontais desde que o julgamento dos Comandos começou em Setembro de 2018. Conhecia Dylan por serem do mesmo grupo do curso 127 em Setembro de 2016, quando Hugo Abreu e Dylan da Silva morreram, ambos com 20 anos, de falência de órgãos causada por desidratação extrema. 

Filipe Emídio aceitou testemunhar na presença dos arguidos e quando lhe foi perguntado se conhecia todos os que estavam sentados no lugar dos réus, virou-se, tirou a máscara e olhou um a um os cerca de dez arguidos presentes – também eles tiraram a máscara. Depois explicou que desistiu do curso 127 porque, como disse, “não queria aquilo”, apesar de ter o projecto de ser Comando e de ser a favor da existência desta tropa especial.

“Não venho com mágoa nenhuma, não venho incriminar ninguém, só venho dizer a verdade”, disse no julgamento que está a decorrer numa sala da Ordem dos Solicitadores, em Lisboa.

Falou de “exageros”, como “o que aconteceu a Hugo Abreu” (numa referência, como consta da acusação, de que um instrutor terá obrigado Abreu a comer terra quando este já não conseguia levantar-se e pedia para beber água) e também da circunstância de “o socorro não ter sido prestado o mais rapidamente possível” a Abreu e a Dylan da Silva. 

Algumas perguntas ficaram sem resposta: ou porque não se recorda ou porque não viu ou porque ficou na dúvida se se tinha passado noutro curso que frequentou anteriormente.

Empurrados para as silvas

Porém, com certeza Filipe Emídio relatou uma primeira vez e confirmou um episódio na carreira de tiro, antes do almoço, que qualificou de “exagero”. Contou como foram “todos ao molho” e “alguns empurrados” para cima das silvas, por ordem dos instrutores. “Houve quem levasse incentivo, houve quem fosse empurrado”, contou. “Um dos cabos andou em cima de nós com as botas. Estivemos ali três ou cinco minutos, só nos podíamos levantar à ordem. Eu estava no chão e só vi a bota do cabo sobre as costas [de um colega].” 

Também falou das feridas e hematomas que viu em Hugo Abreu e Dylan da Silva na enfermaria, onde também esteve depois de desmaiar na primeira instrução da tarde de dia 4 de Setembro. Na chegada à enfermaria, o estado de Hugo Abreu era “notório” e “muito pior do que Dylan”, afirmou. 

Quando questionado, confirmou que era evidente para qualquer pessoa que Hugo Abreu e Dylan da Silva estavam “pior” do que os outros 20 instruendos levados para a enfermaria. O estado deles distinguia-se dos demais. “O Abreu não falava. Se teve assistência de alguém, não me recordo. Só quando começou a gemer” várias pessoas se aproximaram, acrescentou. 

Fotos na enfermaria

Dentro da enfermaria, os elementos da equipa sanitária iam circulando. E continuou: “Lembro-me de uma socorrista com um telemóvel a tirar fotos de todos ali prostrados, a fazer comentários desagradáveis. Um bocado triste. Se [a socorrista] estava a dar assistência? Acho que não. Ela não conseguia fazer as duas coisas ao mesmo tempo: dar assistência e estar com o telemóvel na mão a tirar fotografias.”

Entre a hora a que chegou à enfermaria e a hora a que lhe foi dito para sair – como aos restantes instruendos que aí tinham dado entrada “para repousarem e serem hidratados” – o soldado que testemunhou esta quarta-feira admitiu a um dos advogados de defesa que em certos momentos esteve inconsciente. Mas quando estava desperto apercebeu-se das lesões de Dylan e de Abreu. 

O advogado Alexandre Lafayette, em representação do director da prova e de um dos instrutores de Abreu, dois dos principais arguidos neste processo, tentou desacreditá-lo, quando afirmou que a testemunha não poderia ver as feridas se as vítimas estavam vestidas. Filipe Emídio confirmou o que antes dissera sobre o estado de Hugo Abreu, que além de estar com a manga levantada como Dylan da Silva, tinha “a farda toda rasgada”. Isso, insistiu, permitiu-lhe ver as lesões expostas.

“As testemunhas mentem”, reagiu exaltado o advogado, dizendo que as mentiras não podiam ser permitidas pelo tribunal. E como que a esclarecer qualquer equívoco, disse que como as vítimas tinham roupa não havia feridas ou nódoas negras expostas. 

"Ofensa” ao tribunal

Foi então que a juíza presidente Helena Pinto interrompeu: “Eu não posso admitir em nenhum tribunal que venha um advogado aqui dizer como as coisas se passaram. O senhor não pode depor porque essa não é a sua função”, disse exaltada. “Eu não estou a depor, eu estou a evitar que a testemunha minta. Para se ser juiz é preciso ter alma de juiz e isso eu não vejo aqui”, respondeu de imediato Alexandre Lafayette.

“Já não é a primeira vez que ofende este tribunal”, retorquiu a juíza que preside ao colectivo anunciando que iria tomar medidas. No final do depoimento desta testemunha, proferiu um despacho para que seja extraída uma certidão da acta da sessão e entregue à Ordem dos Advogados, bem como a gravação da sessão e um requerimento que este advogado juntou ao processo “a tecer considerações sobre este tribunal” (mas sobre o qual a magistrada não deu detalhes).

Não foi a primeira vez que Lafayette se “dirigiu a este colectivo de forma deselegante e até ofensiva”, mas “por consideração”, acrescentou a juíza, nada antes tinha sido feito. 

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