O “estranho” caso do Novo Banco

Nunca entendi as razões que levaram a que esta operação fosse transformada numa “venda forçada” com um preço indeterminado e com múltiplos riscos. Receio que esta incompreensão seja partilhada por um bom número de contribuintes.

1. Sempre que o Fundo de Resolução transfere recursos para o Novo Banco – controlado por um fundo internacional sem experiência bancária anterior conhecida – reemergem perplexidades e dúvidas sobre uma operação com um custo global absurdo. Voltou a acontecer, com mais uma transferência de cerca de mil milhões de euros.

Não me proponho participar na “controvérsia” entre quem afirma que esta transferência não devia ter sido realizada sem uma auditoria prévia e aqueles que defendem que ela era inevitável, dado resultar dos termos contratuais da venda.

Considero mesmo – embora possa parecer contraditório – que ambos os argumentos resultam de dúvidas e de preocupações legítimas que reflectem sobretudo a opacidade e a falta de informação e de esclarecimentos que desde início têm envolvido muitas das decisões sobre o Novo Banco.

A verdade, no entanto, é que o custo financeiro e económico, tanto da resolução do BES, como da venda do Novo Banco, justifica que sejam procuradas respostas para dois tipos de questões: em primeiro lugar, porque é que na resolução do BES foi seguido um caminho com riscos jurídicos/legais tão elevados e tão complexo e difícil de um ponto de vista técnico? Caminho que não foi seguido na Europa em nenhum banco com a importância sistémica do BES; depois, porque é que a venda do Novo Banco foi realizada com aquela condicionalidade? O que justificou a concessão de uma garantia tão elevada do Fundo de Resolução com cobertura pública? Em particular, como e quem tem assegurado o controle das decisões de gestão sobre as carteiras de crédito cobertas pela garantia?

2. Não me vou deter na análise do caminho seguido depois da decisão de “resolver” o BES. Deixo apenas algumas observações, na medida em que considero que sem elas não é possível procurar entender a evolução desta operação até hoje. Em particular, há que ter presente que quando uma instituição bancária atinge uma dimensão sistémica – i.e., o seu eventual colapso põe em risco o sistema bancário – torna-se uma organização muito complexa, com equilíbrios entre os diferentes blocos do Balanço que é necessário preservar de modo a não enfraquecer – ou mesmo colocar em risco – o seu modelo de negócio. Deste modo, uma operação que vise “partir o balanço” reveste-se de extrema dificuldade e risco, sobretudo quando realizada por uma nova gestão e se propõe redesenhar um banco destinado a ser objecto de uma venda num período muito curto.

Neste contexto, como entender as decisões tomadas?

Permaneço convencido que a explicação se encontra na convergência de um conjunto de factores e de pressões: políticas, decorrentes de opções do Governo da altura. Este, por razões ideológicas e de cálculo político, quis claramente afastar-se do colapso do Grupo que controlava o BES. Indiferente à importância deste banco no financiamento das empresas, deixou a responsabilidade do destino do BES entregue ao Banco Central. Sempre considerei que esta opção – sem paralelo na Europa, sempre que governos enfrentaram crises bancárias – enfraqueceu a capacidade de negociação com a Comissão Europeia num momento crítico; por outro lado, a tecnocracia europeia – tutelada pela então comissária Margrethe Vestager – estava na altura “ferozmente” empenhada em impor uma aplicação muito restritiva da legislação sobre “ajudas” de Estado, sem qualquer preocupação visível em relação à importância central de um banco sistémico. Como resultado, uma legislação criada com a intenção de proteger os contribuintes foi utilizada numa solução com os custos que estão à vista.

Embora tendo presente as diferenças entre as duas situações, não posso deixar de comparar a atitude de inflexibilidade então assumida pela comissária Vestager e a sua posição complacente perante as enormes desigualdades que se estão a verificar nas ajudas que os diferentes Estados estão a canalizar para as economias no âmbito da actual crise; por último, um Banco Central que – nas fronteiras do seu mandato estatutário – aceitou assumir a responsabilidade de “dar um destino” ao Novo Banco, num quadro de complexidade e dificuldade sem precedentes e sem um respaldo político activo.

3. É neste quadro que deve ser avaliada a questão central no momento actual. Mesmo se admitíssemos que não havia – naquele contexto – caminho alternativo viável à resolução, o que pode ter justificado a garantia concedida ao comprador?

Trata-se de um tipo de garantia muitas vezes concedida no âmbito de processos de venda de instituições financeiras com risco de crédito próprio. O que não considero normal é a aceitação de uma garantia pública, no montante e nas condições da concedida à Lone Star. O argumento de que se trata de empréstimos ao Fundo de Resolução esquece deliberadamente que estes têm reembolso a longo prazo e que o Estado tem de os financiar com dívida.

Para compreendermos as implicações e os riscos da garantia concedida é apenas necessário ter presente que foi concedida sem que fosse assegurado um acompanhamento autónomo, com um mínimo de eficácia, da gestão das carteiras de crédito cobertas pela garantia. Tanto o controle da chamada “Comissão de Acompanhamento” como da Auditoria Externa apenas asseguram avaliações formais e a posteriori das decisões tomadas pela gestão e não se esta procurou preservar e mesmo maximizar o valor das carteiras – activos e garantias – com acções e decisões tomadas em tempo útil. Quem conhece a actividade bancária sabe que a gestão de créditos improdutivos e/ou de baixa qualidade é das tarefas mais complexas, difíceis e de maior desgaste da gestão de um banco.

Neste contexto, a existência de uma garantia que assume características de “first demand” [1] tende a ter um efeito perverso que é necessário enquadrar e acompanhar, o que objectivamente só pode ser assegurado a partir do interior dos órgãos de gestão e de administração. Razão porque nunca entendi porque é que o capital detido pelo Fundo de Resolução não está directamente representado na gestão ou mesmo na administração. Questão que assumiu importância crescente à medida que surgiram indicações da existência de conflitos de interesse envolvendo a gestão e que nunca foram – que eu tenha conhecimento – publicamente desmentidos ou mesmo clarificados. Estou convencido que até os tecnocratas europeus entenderiam os interesses que importa proteger no quadro actual.

A administração do Novo Banco ainda tem margem – à luz do acordo de venda – para solicitar ao Fundo de Resolução quase mais mil milhões de euros. Tudo parece indicar que, daqui a algum tempo, vamos assistir a mais um sobressalto e concluir que não temos alternativa?!

Permaneço convencido que o caminho seguido desde o colapso do BES pressupunha – para ter alguma viabilidade técnica e comercial – um adequado período de estabilização e de relançamento antes de ser iniciado um processo de venda. Na linha, aliás, dos caminhos percorridos noutros países europeus.

Em boa verdade, nunca entendi as razões que levaram a que esta operação fosse transformada numa “venda forçada” com um preço indeterminado e com os riscos que referi. Receio que esta incompreensão seja partilhada por um bom número de contribuintes.

 [1] “First demand”: a garantia tem de ser tomada quando accionada.

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