Fumar no duche

Os novos hábitos obrigatórios custam a entranhar. Anda extenuada e começou a fumar. Parou numa estação de serviço e comprou três maços. Já não fumava desde o tempo do liceu, quando se reunia com o grupo de amigos atrás do pavilhão.

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Skyler King

Há anos, quiçá décadas, que investe tempo e paciência em coisas sem potencial. Começou na formação académica. Perdeu anos na faculdade a queimar pestanas inutilmente no curso de Literaturas Românicas. Agora trabalha na caixa de um hipermercado. Um emprego de risco nos dias que correm. Tem de lidar com centenas de mascarados por dia. A probabilidade de algum deles estar infectado é grande. Ainda não se habituou à máscara, fá-la suar do buço e dá comichão, incluindo no nariz. Custa-lhe respirar e não se pode coçar. Já nem se lembra que existe o plim do registo de compras, que antes a perturbava. Tem outras coisas em mente. O trabalho de merda pesa a dobrar: respirar mal e estar cheia de medo faz parecer interminável o sacana do turno. Mas não quer ser ingrata; nos tempos que correm é uma sorte ter trabalho.

Os novos hábitos obrigatórios custam a entranhar. Anda extenuada e começou a fumar. Parou numa estação de serviço e comprou três maços. Já não fumava desde o tempo do liceu, quando se reunia com o grupo de amigos atrás do pavilhão. Pois é, já teve amigos. Já quase não se lembrava, mas agora não tem. Sabe que recomeçar a fumar aos 34 anos, e quando existe por aí um vírus que ataca o sistema respiratório de forma agressiva e muitas vezes fatal, é estúpido. Talvez seja estúpida. Tem quase a certeza que sim.

Não foi só na formação profissional que investiu inutilmente, também nalgumas amizades e nos homens que escolheu. A única amizade segura morreu há anos de forma inesperada num acidente de viação. A única pessoa que, numa tentativa de a afastar de coisas frustrantes, lhe dizia: “Não tentes fazer lume no duche.” Depois da sua morte, nunca mais quis amigos por perto, percebeu como era terrível e doloroso ter alguém importante e depois, de repente, deixar de o ter.

Quanto aos homens, os poucos que beijou na boca e para quem se despiu, não havia nada de importante a relatar. Nada fora significativo, além da perda da virgindade sem qualquer sentimento. Perdeu a virgindade com um colega de faculdade, um tipo borbulhento e feiote. Queriam ambos desembaraçar-se daquilo; aparentemente eram os únicos virgens numa turma inteira de Românicas. “Donec eris felix, multos numerabis amicos” (enquanto fores feliz, terás muitos amigos), lembrou-se da frase de Ovídio, dos tempos da faculdade. Talvez nunca tenha sido feliz.

O sentimento de não-importância estendia-se a todos os espectros da vida. A sua passagem pelo mundo não era relevante, estava convencida de que nunca o seria. À noite, à janela da sala de sua casa e enquanto acendia mais um cigarro, pensou como seria bom fumá-lo no duche. Não na banheira, não a tinha, no polibã. E tinha a certeza de que este pensamento era apenas mais um, na sua linha de más ideias. Lembrou-se também da advertência da amiga morta — “Não tentes fazer lume no duche.” Agarrou no maço de tabaco e no isqueiro, e foi até à casa-de-banho. Despiu-se, entrou no polibã e fechou a porta de vidro. Ainda fez menção de tocar no manípulo da torneira para abrir a água, mas estancou. Fumar no duche não implicava fazer correr água. Sentiu-se esperta. Gostava que alguém estivesse a assistir àquilo. Sentia-se airosa, quem lhe dera ter tido espectadores. Acendeu um cigarro. As cinzas caíam aos poucos no chão de pedra, ao lado dos pés descalços. Podia andar nua com o Verão dentro de casa. De uma forma inédita, sentia-se mais ou menos bem, mais ou menos vitoriosa. Fumou até ao caramelo, até sentir o fogo entre os dedos.

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