A pandemia e as desigualdades

É fácil imaginar as múltiplas resistências à mudança que aí virão. Mas acredito, como Thomas Piketty, nalgum progresso no difícil mas urgente combate às novas e velhas desigualdades.

A covid-19 é um grande revelador das desigualdades económicas, sociais, ambientais e até geracionais. Embora inicialmente o impacto sanitário tenha atingido sobretudo camadas mais afluentes e com maior mobilidade global, é nas camadas economicamente mais frágeis que a crise se vem agravando a níveis imprevistos. Desde logo, como afirmou Leilani Fahra, relatora especial da ONU para a habitação, “ter casa pode ser, mais do que nunca, uma situação de vida ou morte”. Quem não tem habitação adequada, quem não tem acesso a água, energia e telecomunicações, é mais vulnerável à contaminação e não tem como defender-se.

Estudos recentes revelam que o mesmo acontece em termos de mobilidade e transportes. Na área metropolitana de Barcelona, foram os moradores nos bairros onde os rendimentos são mais baixos os que menos cumpriram o autoconfinamento. Tiveram de continuar a trabalhar, já que deles depende o suporte invisível de todas as cidades, como há muitos anos explicou Saskia Sassen, porque sem uma enorme quantidade de serviços pouco valorizados e muitas vezes mal pagos a concentração urbana não atingiria as dimensões megalopolitanas que tem hoje.

Os surtos a que assistimos em lares de idosos, com uma elevada taxa de mortalidade, ou em hosteis superlotados, com cidadãos que procuraram refúgio em Portugal e foram de certo modo abandonados, são imagens que não podem ser esquecidas. Implicam repensar a forma como organizamos a sociedade e os equipamentos colectivos. Os lares não podem continuar a ser depósitos de pessoas ditas “inactivas”, precisam de ser espaços multigeracionais, com modalidades diversificadas de habitação partilhada inserida na comunidade envolvente. Os alojamentos de emergência para pessoas sem abrigo têm de dar prioridade à autonomia habitacional e ao direito à privacidade. Hosteis e pensões baratas, a que a segurança social recorre quando falta alojamento, são um mundo onde a especulação se alimenta de dinheiros públicos, numa aliança perversa, escondida por trás da fachada de prédios anónimos. Os surtos em fábricas na região de Lisboa e Vale do Tejo não podem ser desligados das condições de transporte público a que os seus trabalhadores recorreram diariamente, mesmo durante o estado de emergência.

Se juntarmos a estas vulnerabilidades o crescimento exponencial de pedidos de apoio alimentar, mesmo de pessoas que nunca pensaram vir a ter o fazer, e a massa crescente de desempregados sem qualquer rendimento, vislumbramos a profundidade da crise que a pandemia arrasta consigo. Estamos ainda no começo. Os apoios públicos anunciados não vão chegando a tempo e serão sempre insuficientes. Nem creio que possa ser o Estado a acudir a todos o tempo todo. O desafio que se coloca é de resiliência e abrange a sociedade portuguesa no seu todo. Mais que uma simples adaptação, exige de todos nós solidariedade, persistência, capacidade de inovação e disponibilidade para tirar lições do que estamos a viver.

Todas as crises abrem uma bifurcação de futuros. Podemos tentar que volte tudo ao que antes considerávamos normal, a que agora chamamos “novo normal”. Ou podemos lutar para que os múltiplos desequilíbrios que a crise revelou sejam combatidos com políticas locais, nacionais, europeias e globais que coloquem acima de tudo os valores da vida. Conhece-se a capacidade histórica de recuperação do poder do dinheiro. É fácil imaginar as múltiplas resistências à mudança que aí virão. Mas acredito, como Thomas Piketty, que uma vasta deliberação colectiva, informada e fundada nas razões, caminhos, lutas e experiências de todos, poderá conduzir a algum progresso no difícil mas urgente combate às novas e velhas desigualdades.

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