Dia 41: Mães, tomem mais conta de vós

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Mãe,

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Quarenta e oito horas depois de nos termos reencontrado já está a rezar para que o Governo declare o Estado de Emergência outra vez? Parecia um bocadinho pálida, quando nos despedimos!

Foi absolutamente maravilhoso estarmos juntos outra vez, e espero que nunca mais voltemos a ter um distanciamento forçado, mas há uma parte de mim que está mesmo com medo do que aí vem. Esta quarentena teve, para mim, uma vantagem. Nos meses antes do confinamento estava, como seguramente tantas mães, a sentir-me literalmente debaixo de água. Chegava à noite e revia o dia com uma sensação de desespero por ter “falhado” em tantas coisas. O carro que era suposto ter ido para a oficina ainda continuava à porta de casa, o pagamento das actividades extracurriculares tinha-me passado, e depois de duas tentativas frustradas, esquecera-me de marcar o dentista. E como é que não arranjei tempo para ir à depilação? E ao cabeleireiro? Porque é que não tomava mais conta de mim? E, como é que era possível que tivesse trabalhado tão pouco?

Não eram os meus únicos falhanços. Na pressa de comprar calças para o Mini E., numa ida ao shopping entre deixar uma na escola e ir buscar outra à ginástica, tinha trazido o número errado, e não lhe serviam. Depois esquecia-me de as trocar a tempo e ficaram eternamente umas calças pequenas demais na mala do meu carro. Atendia o telefonema das minhas amigas e olhava para os meus pratos “bons” a pensar que há séculos que não dava um jantar! A minha sogra queixava-se que “nunca mais tínhamos aparecido” e o meu carro estava eternamente “por arrumar” — como, aliás, a mãe me lembrava sempre que lá entrava! Sentia-me a falhar com os meus filhos se os deixasse para ir de férias, e a falhar o meu marido, se ficasse... Enfim, todos os dias desiludia o mundo.

Sentia que andava atrás de um comboio que nunca conseguia apanhar. Lembro-me de pensar: e se o mundo parasse só um bocado para me dar a oportunidade de por as coisas em ordem, depois seria mais fácil recomeçar. E, de repente, pela pior das razões, o mundo parou mesmo! Juro que não desejei que parasse assim! Mas a verdade é que já não era possível ir à oficina, ao dentista, a casa de ninguém, não precisava de me sentir mal por não estar a levar os meus filhos a mil actividades, ou levá-los a brincar com outras crianças “porque era bom para eles”, não precisava de ir numa date night porque “era bom para o casal”, ou ir ao cabeleireiro, porque “era bom para mim.”

Senti-me livre nesta quarentena das expectativas dos outros. Das responsabilidades. E isso ajudou-me a sarar, a respirar.

Às vezes, é bom haver “alguém” que nos tira a responsabilidade das mãos e nos obriga a descansar. Cria espaço por nós. E, idealmente, tornamo-nos suficientemente forte para voltar ao mundo, mas conhecendo melhor os nossos limites. Mas não deixo de ter algum medo da recaída. Sou só eu que sou “bicho-do-mato”, ou a mãe partilha de algum dos meus receios?


Querida Filha,

A palidez daquele dia não é nada comparada com a cor de que fiquei depois de ler a tua carta. Obrigada pela sinceridade e por não tapares com paninhos aquela que é a realidade de tantas mães, sobretudo de mais filhos. Mas, como tua mãe tenho dificuldade em não hiperventilar e desejar “controlar” a tua vida, mesmo sabendo que nem tu queres, nem é preciso.

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Depois deste pequeno interlúdio de mãe/avó, vamos ao que interessa. Comungo da tua certeza de que esta paragem forçada nos permitiu (sobretudo aos que puderam ficar em casa) fazer um balanço da correria em que andávamos, tantas vezes para cumprir expectativas alheias ou, pior, fabricadas por nós mesmos. Confesso que senti alívio por ser anti-social sem culpa, como foi alívio o que senti ao ver a agenda vazia de compromissos, mantendo ainda por cima a parte melhor que é o prazer de escrever — nomeadamente estas nossas cartas, que nos permitem conversar, às vezes mais do que quando estamos fisicamente juntas.

Percebo tão bem o teu medo de que o turbilhão regresse, que nos voltemos a sentir puxados para todos os lados, e se abram as portas para um mundo que é uma mistura de regras e realidades de contornos mal definidos, sujeitos à interpretação de cada um, e sobretudo à sua dose de medo. Mas sim, Ana, as oficinas abrem, e a minha fiscalização ao teu carro regressa...

Gostava de dizer que aprendi a lição, que arrumei as prioridades e que vou ser capaz de dizer mais vezes que “Não”, mesmo enquanto avó, mas suspeito que não mudei assim tanto. E isso, por contraditório que pareça, deixa-me feliz. Há um lado de mim que agradece ter sido educada a esfolar os joelhos, soprar na ferida, e pôr-me de novo de pé. Se acrescentar a isso um bocadinho mais de consciência dos meus limites e a coragem de os assumir, acredito que posso encontrar um equilíbrio mais perfeito.

Dito isto só te peço: toma mais conta de ti.


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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