Concertos: será necessário reinventá-los mas essencial é que regressem

A partir de Junho os concertos voltarão a acontecer país fora. Com lotações reduzidas, ainda com incertezas. A alusão de António Costa a “concertos em estádio” não se afigura “exequível” para os promotores ouvidos pelo PÚBLICO.

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O regresso dos concertos será feito numa nova realidade, com a obrigação de lugares marcados e distanciamento social FRANCISCO ROMAO PEREIRA

Regressar o mais rapidamente possível para pôr a indústria a funcionar e reinventar a actividade para fazer frente aos novos tempos. A reinvenção pode passar pela articulação entre a presença física nas salas e o acesso pago às actuações online. E o regresso é também essencial para passar uma mensagem de confiança aos espectadores. É o que dizem ao PÚBLICO dois promotores de concertos, Vasco Sacramento, da Sons em Trânsito, e Márcio Laranjeira, da Lovers & Lollypops.

Definido para Junho o regresso da música ao vivo, e confirmada esta quinta-feira a proibição até 30 de Setembro dos festivais de música, os promotores preparam-se para uma nova realidade. Álvaro Covões, o responsável pela Everything is New, promotora do Nos Alive mas também de vários outros concertos ao longo do ano (Guns N’Roses e Bon Iver eram dois dos marcados para 2020 e entretanto adiados), dizia ao PÚBLICO esta quinta-feira tratar-se de “uma questão de sobrevivência para os agentes que trabalham nesta área, e para a própria indústria. Não podemos passar um Verão sem trabalho”.

Ouvido agora, Vasco Sacramento, director-geral da Sons em Trânsito, responsável pela programação do Capitólio, em Lisboa, e pelos concertos de António Zambujo, Ana Moura, Pedro Abrunhosa ou Gisela João, entre outros, dá conta dessa mesma urgência, realçando que, tendo em conta que ainda não são conhecidas em profundidade as regras a que os promotores terão que se submeter — há a expectativa que venham a ser reveladas ao pormenor quando da próxima reunião do Conselho de Ministros, quinta-feira —, “a incerteza é neste momento muito grande”. Exemplos práticos: “Sabemos que as lotações serão reduzidas, mas não quão reduzidas serão, bem como quais serão especificamente as regras de higiene e de segurança.” Ainda assim, acentua que o principal “é regressar o mais depressa possível, sabendo que estamos a viver um tempo de guerrilha e de resistência e que vamos ter de nos adaptar”: “Não serão espectáculos com as condições ideais, mas temos de trabalhar e passar às pessoas uma mensagem de confiança, porque acredito que o público poderá sentir neste momento menor confiança em regressar”.

A definição exacta das regras a cumprir será decisiva para definir com precisão os moldes deste regresso. A percentagem de redução nas lotações das salas é, como referido, determinante. “Pela minha experiência, em média os espectáculos têm break-even entre os 70 e 75% da lotação”, diz Vasco Sacramento. “Se a lotação for reduzida para um terço, não fará sentido fazer como fazemos. Teremos de pensar em formatos reduzidos, em espectáculos a envolver menos gente.”

Márcio Laranjeira, um dos responsáveis pela Lovers & Lollypops, promotora e editora portuense muito activa na área da criação musical independente (no seu catálogo encontramos os Glockenwise, Black Bombaim, João Pais Filipe ou os brasileiros Boogarins, sendo também uma das organizadoras do festival micaelense Tremor, cuja edição 2020, já esgotada, foi cancelada), conta ao PÚBLICO que, para fazer frente à ausência de música ao vivo, a estrutura criou o Clube Lovers & Lollypops, plataforma que oferece, a preços variáveis, acesso a vários conteúdos — mixtapes, edições discográficas, documentários, streamings. Lançado para lidar com a paralisação da indústria, será mantido e ajustado a esta nova realidade. “A divisão entre bilhetes físicos e bilhetes que dêem acesso a conteúdos online com qualidade poderá ser uma solução.” 

Preço de bilhetes não aumenta

Pelas novas soluções não passará o aumento do preço dos bilhetes. Poderia ser uma forma de compensar o menor número de espectadores, mas, como aponta Vasco Sacramento, “não me parece manifestamente uma boa ideia com tantos layoff e uma crise que se abate sobre as pessoas”. Além disso, “a ideia de criar um exclusivismo cultural, com concertos acessíveis apenas a quem possa pagar bilhetes de cem euros não nos agrada de todo”, diz Márcio Laranjeira.

Neste contexto, Vasco Sacramento vê como “muito importante” a possibilidade de organizar concertos ao ar livre. Mesmo com muitas condicionantes — “plateia sentada, limitação de lotação e distanciamento social” —, “temos de aproveitar essa oportunidade”. Tendo em conta os traços de sazonalidade que marcam a actividade, o Verão tem importância primordial na indústria da música. “O Verão tal como o conhecíamos já não é possível ser reposto, mas é importante que se salvem algumas coisas, não só para dinamizar o sector cultural como para alavancar o turismo interno, que será determinante dado que não teremos muito turismo estrangeiro.”

Praticamente excluída da equação ficará a possibilidade, a que o primeiro-ministro António Costa já aludiu, de um regresso aos concertos de estádio que marcaram a década de 1980 e 1990. “Não é a mesma coisa montar o som numa sala ou num estádio”, com os gastos de produção a aumentarem significativamente no segundo caso. “Num estádio, onde caberiam habitualmente milhares de pessoas, a lotação ficaria agora muito reduzida. Financeiramente, não me parece exequível”, afirma o representante da Lovers & Lollypops. Tendo em conta que, para cumprir as regras relativas a lugares sentados e distanciamento social, a lotação de um estádio ficaria reduzida a “três ou quatro mil pessoas”, Vasco Sacramento só encontra três formas de tornar a ideia uma realidade: “Com patrocínio de uma marca, com apoio estatal ou autárquico ou com bilhetes manifestamente caros”. Para o director-geral da Sons em Trânsito, a sugestão de António Costa “tem que ser entendida de uma forma simbólica”: “Foi como que um passar a bola para o lado dos promotores: sejam criativos, reinventem-se e adaptem-se a esta nova situação”.

O regresso à actividade porá novamente em funcionamento uma indústria paralisada há meses. Porém, as condições em que ele acontecerá tornam certo que “qualquer lucro está comprometido”. Ainda assim, neste momento, como acentua Vasco Sacramento, o principal “é que a economia cultural volte a dar algum trabalho às pessoas que a compõem e aproveitar estes meses de retoma lenta e faseada para aumentar a confiança dos espectadores de forma a que, a seguir ao Verão, tenhamos condições para retomar a vida com alguma normalidade”.

Neste período de transição, Márcio Laranjeira defende como essencial que se distinga claramente entre a iniciativa pública e privada. “Uma coisa é dizer a uma instituição pública que a sua lotação será reduzida a um terço, dizê-lo a uma promotora privada é completamente diferente. Cumprindo as mesmas regras não terá os mesmos resultados. Terá que haver uma cobertura estatal em relação a esta questão, porque não está relacionada com incompetência ou falta de noção, mas com o cumprimento das regras definidas. Em Espanha, a maioria dos promotores tem-se negado a trabalhar nessas condições, por ser simplesmente impossível fazê-lo.”

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