Seremos tão fortes quanto o nosso elo mais fraco nos permitir

Entramos, a partir de agora, numa batalha constante para adiar ou cancelar uma possível segunda onda, e que será decidida, essencialmente, em quatro frentes.

Numa fase em que se começam a aliviar algumas das restrições impostas à sociedade portuguesa (à semelhança do que tem acontecido um pouco por todo o mundo), e com vista à progressiva retoma de todas as atividades fundamentais para garantir a sustentabilidade económica a curto e médio prazo – e enquanto vamos discutindo opiniões, indícios ou notícias de tratamentos, práticas inovadoras ou prazos para a disponibilização de vacina contra o vírus que causa a covid-19 – importa recentrar a atenção nas faces reais da resposta à pandemia.

No momento em que escrevo, tudo indica que temos conseguido mitigar o primeiro impacto, com a estabilização nos números e na tendência nacional, mesmo quando se analisa cada uma das regiões individualmente. Estudos futuros analisarão a que preço, mas parece dever-se principalmente às medidas adotadas por autoiniciativa dos cidadãos, bem seguidas depois pelas autoridades e o Governo, e do desvio da prestação de cuidados no Serviço Nacional de Saúde maioritariamente para a covid-19, permitindo aumentar a sua capacidade. O levantamento das restrições comunitárias será acompanhado pela retoma da atividade assistencial programada, necessária para não agravarmos a jusante indicadores de saúde que temos como fundamentais, e com esta retoma dar-se-á novo ajuste dos serviços e respetivos recursos alocados.

Entramos assim, a partir de agora, numa batalha constante para adiar ou cancelar uma possível segunda onda, e que será decidida, essencialmente, em quatro frentes:

1. Capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Manter esta capacidade foi sempre o objetivo primordial, expresso no “achatar a curva” e com vista a evitar as imagens aterradoras que nos chegavam de países próximos. Até agora foi dada resposta efetiva, especialmente no que concerne à necessidade de camas de internamento, de cuidados intensivos e/ou suporte ventilatório. Estas respostas têm sido reportadamente reforçadas, pelo que resta perceber se a capacidade atualmente instalada é suficiente para responder às necessidades criadas pelo retorno da produção total do SNS e das necessidades aumentadas que decorrem do levantamento das restrições comunitárias. Além da capacidade, os profissionais de saúde tiveram até aqui tempo para treinar e assimilar diferentes circuitos, distintos, covid e não covid​.

2. Comportamento que adotarmos enquanto sociedade. Esta frente de batalha importa a todos, com diferentes medidas de saúde pública a adotar consoante os contextos e as realidades. Importa criar um novo normal quotidiano, numa altura em que já sabemos o fundamental (higienização das mãos, etiqueta respiratória, utilização de máscara em espaços fechados, distanciamento social, autovigilância de sintomas) e faltará eventualmente assimilar algumas especificidades adaptadas a cada atividade. Estas deverão ser divulgadas o mais atempadamente possível, baseadas nas melhores práticas e comunicadas eficazmente, para serem compreendidas e adotadas por todos.

3. Comunicação e monitorização do desenrolar da situação. O que começou como uma “infodemia”, com propagação e circulação de fake news e algum caos na obtenção de informação fidedigna, teve uma resposta bastante positiva por parte de toda a comunidade, no qual incluo o papel relevante que assumiram os órgãos de comunicação social. Nunca tantos especialistas, entendidos ou profissionais da área tiveram espaço para comunicar, informar e debater conceitos, de que é exemplo, de resto, esta coluna em parceria PÚBLICO/ANMSP. Debatemos conjuntamente conceitos mais ou menos complexos, na tentativa de informar as implicações destes conceitos para o dia-a-dia. Depois da novela das máscaras ultrapassada, é altura de recentrar a comunicação para chegarmos a consensos e entendimentos nos comportamentos a adotar, promovendo a participação e entendimento e não deixando ninguém para trás.

4. Capacidade das Unidades de Saúde Pública (USP), ou a capacidade de conter novas cadeias de transmissão, comunitárias ou em contextos específicos (estabelecimentos para idosos, creches, estabelecimentos escolares, outros). Esta capacidade está intimamente ligada ao rastreio de contactos (contact tracing), ao teste atempado a casos suspeitos e à capacidade de implementar medidas de controlo. O rastreio de contactos de um caso confirmado inclui todos os procedimentos desde a identificação, listagem e seguimento dos contactos de um caso; não significa necessariamente, e ao contrário do que o sentido leigo da palavra nos faz crer, que se testem laboratorialmente todos os contactos. Durante este exercício é aferido o risco de exposição de cada indivíduo e determinadas as medidas de vigilância que permitam a identificação precoce de manifestações da doença. A finalidade é perceber se um contacto se transforma num novo caso. Permite ainda identificar, descrever e controlar as diferentes cadeias de transmissão comunitárias. Apesar de particularmente importantes nas fases iniciais da resposta a um surto, mantêm-se pertinentes nas restantes fases, com dificuldade acrescida de identificar cadeias em contexto de transmissão disseminada. Numa fase em que se pretende regredir na fase de pandemia (para uma fase novamente controlada), esta estratégia adquire importância redobrada.

E em Portugal? Já nos começámos a questionar que equipas realizam estas atividades, em que condições e com que ferramentas?

Um artigo recente do El País aponta vários exemplos de países que estão a levar muito a sério a tarefa de identificar e investigar os contactos dos casos identificados, reforçando as suas equipas com esse propósito.

A China demonstrou o efeito massivo do rastreio de contactos, onde em Wuhan (11 milhões de habitantes) cerca de 9000 epidemiologistas faziam dezenas de milhares de rastreios de contatos diariamente.

Sabemos que para ser efetivo, o rastreio de contactos assenta na participação ativa e cooperação das comunidades afetadas. Mas essas não parecem ser, para já, um problema. De facto, as USP têm trabalhado continuamente, incluindo fins de semana e feriados, e numa altura que esperamos aumentar as necessidades nada indica que nesta frente tudo esteja completamente salvaguardado. Com o regresso dos cuidados de Saúde business as usual, correm inclusivamente o risco de perder a colaboração de outros profissionais que lá estavam temporariamente alocados.

Ninguém discute a importância de paulatinamente levantarmos todas as restrições. E as operações essenciais em Saúde Pública, pouco priorizadas no dia-a-dia pré-covid, mas realizadas rotineiramente (em doenças como sarampo, meningites bacterianas em contexto escolar...), há muito incluem a vigilância epidemiológica e o rastreio de contactos. Agora, numa emergência de Saúde Pública, correm o risco de ser o elo mais fraco na resposta à pandemia por falta de recursos humanos dedicados e capacitados, priorização dessas atividades e contextos organizacionais incluindo investimento e condições.

Na batalha para adiar ou cancelar uma possível segunda onda, sabemos que a nossa resposta será tão forte quanto o nosso elo mais fraco o permitir.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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