Desafios conjugais em tempos de pandemia

O psiquiatra Júlio Machado Vaz reflecte sobre a proximidade forçada pelo confinamento obrigatório e como isso pode influenciar o relacionamento de um casal.

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D.R.

Vivemos tempos diferentes e que, necessariamente, impõem, entre outras regras, novas questões e noções de relacionamentos. Por força dos efeitos da pandemia, milhares de casais tiveram de ficar em casa, em quarentena, uma realidade que pode aumentar ou confirmar a solidez ou ruptura numa relação a dois.

E é esse o tema escolhido pelo psiquiatra Júlio Machado Vaz e a Multicare para esta que é a quarta sessão de Por Falar Nisso, um assunto sensível e com influência directa nas «dinâmicas do casal». Essa questão é sobremaneira pertinente tendo em conta os ecos que nos chegam da China sobre o aumento do número de divórcios nesta conjuntura COVID-19, e cuja principal razão apontada é…o excesso de tempo passado a dois.

Essa pouco usual “abundância”, as aspas serão opcionais, caso a caso, leva-nos a reflectir sobre a força e solidez dos relacionamentos em si, pois, como refere Júlio Machado Vaz, são construídos à base de tanta proximidade que se perde a isenção, ou a própria vontade de «analisar como é o outro», ficando apenas «espaço para o amor…quando ele ainda existe».

Amor (sempre) à prova

Se a matemática do relacionamento de um casal em contextos “normais” já exige algumas equações de graus de dificuldade dispares e elevados, perante o isolamento esse desafio aumenta, mas, afirma Júlio Machado Vaz, a maneira como a intimidade «se mantém e resiste a estes tempos depende muito do tipo e da qualidade da relação (de) antes», mas, se devidamente sólida, «é muito mais provável que aguente este stress». ​

Mas, e como estamos a lidar com as variáveis impostas pelo novo coronavírus, é importante ter presente que perante períodos de quarentena voluntária «as consequências psicológicas para as pessoas são muito menos duras do que quando estamos em presença de períodos obrigatórios».

Essa realidade tem de elevar o nosso sentido de alerta, fazer-nos olhar para o edifício da relação em si, e estar preparado para o inesperado. Vejamos, se «a relação está má, e há fissuras, é muito mais provável que essas fissuras se acentuem», afirma o psiquiatra. «Mas, uma situação deste tipo, com este stress – aquilo que chamamos, uma situação limite – pode ter consequências inesperadas», confessa Júlio Machado Vaz. «Por exemplo: duas pessoas que estão numa relação que está periclitante, de sobrevivência física e da própria relação, podem descobrir que, espontaneamente, as suas prioridades se alteraram e a relação até melhorou. De certa forma, perante a ameaça, uniram-se e a relação parece voltar a consolidar-se», refere. Depois, «há ainda casais que, pelo menos nos períodos iniciais, descrevem isto como uma lua-de-mel: estão juntos». 

Lutar contra o fatalismo

Perante estas possibilidades, fica uma lição para todos, pois «com o passar do tempo, vão surgir conflitos», garante Júlio Machado Vaz. Essa inevitabilidade deriva do facto de estarmos «irritáveis» e confinados à força. Normalmente, há mais espaço, «cada um de nós tem a sua profissão: sai, reentra, tem coisas para contar ao fim do dia. Agora, «se estão os dois em teletrabalho», pode sentir-se «necessidade de estarem um pouco sozinhos, consigo próprios».​

Na realidade, «os casais vão ter de se preparar para passar maus bocados», para o «aumento das discussões, do número de divórcios», tema que Júlio Machado Vaz já abordou noutras sessões (veja os dois episódios dedicados ao tema do divórcio - 1 e 2), mas é também urgente entender que «quando uma relação passa por crises, e se as sobrevive, em geral, a relação fica solidificada», em especial se percebermos que «o outro não pode ser obrigado a fazer tudo como nós queremos, quando queremos; não é um apêndice nosso. É no respeito pela sua liberdade, nem que seja dentro de quatro paredes, que a relação tem mais probabilidade de sobreviver», acredita o psiquiatra.

Na próxima semana não perca mais um episódio, enquanto espera poderá seguir este projecto da Multicare no site Por Falar Nisso.