Quantos morrem de covid-19 na Nicarágua, o país do faz-de-conta?

Se fôssemos acreditar nos 15 casos oficiais de covid-19 e cinco mortos, a Nicarágua teria a taxa de mortalidade mais alta do mundo. A Igreja Católica fala em “desinformação”, acusa o Governo de tratar a pandemia com “ligeireza” e de continuar a perseguir quem se lhe opõe.

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Fumigação de um mercado em Manágua, a capital nicaraguense Jorge Torres/EPA

Bandos de orteguistas andam pelas ruas a arrancar máscaras de transeuntes. “Não são necessárias”, gritam os acérrimos defensores do Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, que se recusa, por questões económicas, a adoptar medidas de isolamento social no país para travar a pandemia de covid-19.

Uma atitude vista com preocupação por parte da população que teme os efeitos da inércia com que as autoridades estão a encarar a propagação do vírus num país de 6,3 milhões de habitantes que já há muito tempo atravessa uma grave crise económica.

“Constatámos a aflição do nosso povo pela ligeireza com que se encarou esta emergência sanitária”, afirmou na segunda-feira, em comunicado, a Comissão Justiça e Paz da arquidiocese de Manágua. “Além disso, preocupa-nos que no meio da pandemia não cesse a perseguição política a nível nacional.”

Ortega participou, na segunda-feira, na cimeira virtual do Movimento dos Não Alinhados, onde acusou os Estados Unidos de continuar a interferir nos assuntos internos dos países latino-americanos: “A pandemia de covid-19 não deteve as pandemias das violações dos princípios das Nações Unidas. Mais terrível ainda, estão a aproveitar-se da pandemia para acentuar as agressões contra povos irmãos em diferentes regiões do planeta”.

O Presidente nicaraguense, que chamou aos Estados Unidos “os maiores terroristas do mundo”, acrescentou que “a pandemia mais terrível que a humanidade enfrenta é o uso da força, a ameaça do uso da força, as guerras que promovem as potências e, em particular, os Estados Unidos da América do Norte”.

A que realmente Ortega não fez alusão foi à situação da pandemia na Nicarágua, onde os médicos denunciam a falsidade informativa do Governo, as mensagens confusas que transmite, a subnotificação de casos e a ostensiva transformação de óbitos de doentes com sintomas de estarem infectados pelo novo coronavírus em mortos por “pneumonia adquirida na comunidade” ou pneumonias graves.

“Preocupa-nos a falta de distanciamento social, a convocatória de reuniões massivas. Preocupam-nos os exames, a rastreabilidade dos contactos e a notificação dos casos. Também nos preocupa aquilo que achamos ser uma prevenção e controlo de infecções desadequados”, afirmou Carissa Etienne, directora da Organização Panamericana da Saúde, citada pela BBC.

Os resultados do país seriam caso de estudo – 15 casos positivos, com cinco mortes e sete recuperados até ao dia 4 de Maio – não fosse o facto de quase todos estarem convencidos que em nada correspondem à realidade. “O balanço oficial de contagiados e mortos pela covid-19 não reflecte a realidade”, explicou à RFI Francisco Javier Nuñez, vice-presidente da Unidade Médica Nicaraguense.

Sendo certos, “a Nicarágua seria o país com a mais alta taxa de mortalidade” por covid-19 do mundo, maior, muito maior que os 14% de Itália o pior em rácio de mortos por infectado, como disse, à Deutsche Welle, a eurodeputada Soraya Rodríguez, que faz parte da comissão de Negócios Estrangeiros e Saúde Pública do Parlamento Europeu.

Hostilidade

Nicarágua foi o único país da América Central que não adoptou as medidas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde ou pela OPS, mantendo as fronteiras abertas, sem restrições à entrada de estrangeiros (até resolveram fazer promoção do turismo do país), os bares e discotecas também continuam a receber clientes, as escolas seguem em funcionamento, tal como as ligas de futebol. O Governo, ao invés de campanhas de prevenção da transmissão do vírus, promove festas e ajuntamentos.

Os que tentam divulgar medidas para evitar a transmissão da doença ou se recusam a pactuar com a mentira são encarados com hostilidade pelo Governo e seus apoiantes. De acordo com o jornal nicaraguense La Prensa, citando várias fontes da área da Saúde, nas últimas semanas houve 25 demissões e quatro despedimentos relacionados com a questão da pandemia.

Face ao mascarar da informação por parte do Governo, sem possibilidade de testarem os doentes para saber se estão infectados, os médicos sentem-se impotentes para cumprir o seu juramento e tratar o melhor possível os pacientes.

“Dizem-te que vais atender, sem protecção, pacientes que possivelmente estão contagiados. Vão fazer com que adoeças também. É como se te mandassem para a guerra, para a linha da frente, e sem espingarda ou munições”, referiu o mesmo Francisco Javier Nuñez, desta vez citado pelo La Prensa.

“Estamos perante uma grave situação política, económica e social, a que se veio somar a pandemia da covid-19”, continua o comunicado da Comissão Justiça e Paz. “A doença já está entre nós e os números da América Latina vão crescendo todos os dias. Não se trata de atemorizar. Pelo contrário, a fonte de ansiedade está na desinformação e na desconfiança”, acrescenta o comunicado da Igreja, que tem mantido uma posição diametralmente oposta à do Governo durante a pandemia, aconselhando as pessoas a ficar em casa.

Esta segunda-feira, o Conselho Europeu sancionou (com proibição de viajar e congelamento de bens e contas) seis altos dirigentes nicaraguenses por “graves violações dos direitos humanos”. Josep Borrell, o chefe da diplomacia da UE, sublinha, numa declaração, que “a repressão exercida pelas forças de segurança e os grupos armados aliados do Governo contra opositores políticos, manifestantes, jornalistas, organizações da sociedade civil e membros da Igreja Católica tem continuado”.

Nas últimas semanas, a pressão e repressão das forças do regime voltou-se para os profissionais de saúde que reclamam publicamente medidas efectivas para o controlo da pandemia e distribuição de equipamento de protecção individual para médicos, enfermeiros e auxiliares.

Um grupo de médicos lançou recentemente uma declaração em que acusa o Governo de “expor os profissionais de saúde ao risco de infecção com formas de actuação que não demonstraram nenhuma eficácia, como as denominadas visitas casa a casa”.

Estes levantamentos domiciliários dos padecimentos dos nicaraguenses é um orgulho do Governo que não se cansa de promover a iniciativa. Esta semana a vice-presidente e primeira-dama, Rosario Murillo, anunciou o início da quarta fase do projecto.

“Esta quarta-feira iniciamos um censo nacional em que vamos fazer, família [a família], casa a casa, com os adultos mais velhos e os pacientes com doenças crónicas, com as pessoas com deficiências, a actualização do mapa dos padecimentos de saúde para promover cada vez mais a vida na nossa Nicarágua”, afirmou a vice-presidente em declarações ao site El 19 Digital.

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