Ensino a distância: oportunidade e não oportunismo

O ensino a distância não é para todos. Não o é porque requer instituições legitimadas para facultarem ofertas pedagógicas coerentes e socialmente pertinentes, interpretadas por professores e por tutores que hão de ter vocação e formação adequadas. Para o dizer de forma sintética: que se não transforme em oportunismo o que é uma mera oportunidade.

Eis senão quando o ensino a distância (EaD) passou de patinho feio a cisne elegante. Sob a pressão da pandemia, foram adotadas soluções precárias de ensino e aprendizagem semelhantes a métodos de EaD e não mais do que isso. Reconheço e aceito: na situação que estamos a viver, não seria possível fazer melhor e é louvável o esforço de estudantes e professores para se adaptarem a um modelo de trabalho que não pode ser reduzido, apesar do aperto em que estamos metidos, a “aulas pela Internet”. Reporto-me aqui tão-só ao que tem estado a acontecer nas universidades e à agilidade com que perfilharam o EaD (ou o que se julga ser tal coisa), como se ele não implicasse mais do que as tais “aulas pela Internet”, quase sempre com recurso a plataformas que não foram pensadas nem customizadas para EaD.

Recuo um pouco, porque a memória não deve ser rasurada. Durante as cerca de três décadas que leva de existência, a única universidade de ensino a distância que existe em Portugal – a Universidade Aberta – foi encarada com desconfiança e com preconceito, por quem nunca tratou de saber qual a efetiva função socioeducativa do EaD. Mais: em muitos momentos, o EaD foi hostilizado pelo poder político e até ameaçado de extinção. Sei do que falo e não me alargo mais sobre este ponto.

Aquilo que agora está em causa não é tanto o recurso momentâneo a instrumentos e a métodos pedagógicos (e também, já agora, a processos de avaliação) elaborados ao longo de muitas décadas de existência do EaD e que não se compatibilizam com a improvisação. Com essa base de sustentação e com a experiência adquirida um pouco por todo o mundo, o EaD constitui hoje uma metodologia de ensino complexa, sofisticada do ponto de vista técnico e direcionada para públicos com feição própria. Aquela sofisticação acentuou-se desde que o digital entrou na cena do EaD, aprofundando o seu potencial, mas também (convém ter isto presente) exigindo atitudes cognitivas e colaborativas bem diferentes daquelas que predominam no ensino presencial. 

O EaD, em suma, não é para todos. Não o é porque requer instituições legitimadas para facultarem ofertas pedagógicas coerentes e socialmente pertinentes, interpretadas por professores e por tutores que hão de ter vocação e formação adequadas (ou seja, não basta saber Física, Matemática, Direito Civil ou Linguística para ensinar em EaD). Ao mesmo tempo, o EaD não se ajusta a quaisquer matérias ou públicos, indiferenciadamente. Sendo muitas vezes um ensino de segunda oportunidade (nada há de reprovável nisso, bem pelo contrário), o EaD destina-se sobretudo a populações adultas, eventualmente inseridas na vida profissional, com motivação e com disciplina para trabalharem com alguma autonomia. A isto acrescento que um dos campos de ação do EaD, como mostram as melhores práticas internacionais, é a aprendizagem ao longo da vida, com ou sem acreditação académica, coisa que em Portugal nunca foi devidamente acolhida, tanto por parte de entidades empregadoras, como por parte do Estado e da academia.

O que fica dito tem em vista não tanto o que, sob a pressão da emergência, está a acontecer entre nós (e não só entre nós). Repito: compreende-se e aceita-se que, conjunturalmente, se recorra a alguma coisa das lógicas que regem o EaD, no sentido de resolver, em parte, dificuldades que são conhecidas. O problema surge quando começam a aflorar (refiro-me de novo ao ensino universitário) tentações para se naturalizar o que é ocasional. Como quem diz: se o EaD parece ser (sublinho: parece ser) ágil, acessível, barato e razoavelmente aceite, então adotemo-lo, mesmo quando ele não está de acordo com a matriz educativa de universidades que acabam de descobrir o seu esplendor. Pior: por esta via (que é também económica, claro está), chegaríamos inevitavelmente a outras decisões, não menos gravosas: se o EaD não pode acudir, como é bem sabido, a matérias com forte componente prática e laboratorial, então reservemo-lo para aquelas outras matérias (ditas) do quadro e giz. Ou do PowerPoint, na atualidade. Por exemplo, as Humanidades, o Direito ou as Ciências Sociais.

Há não muito tempo, o ex-reitor João Gabriel Silva encetou, na Universidade de Coimbra, uma parceria com a Universidade Aberta que ignoro se teve os desenvolvimentos que então se perspetivavam. É esse o caminho e não outro. Quero dizer: não se trata de, sub-repticiamente, transmutar (mirabile dictu!) universidades presenciais em universidades de ensino a distância, sem se ter em conta as exigências pedagógicas, logísticas (que não são poucas), técnicas e socioprofissionais que uma tal metamorfose exige. Para o dizer de forma sintética: que se não transforme em oportunismo o que é uma mera oportunidade.

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