À terra o que é da terra, aos homens o que é dos homens

Testemunho de Patrícia Ruivo, psicóloga. “Somos um país em luto e defendo, do coração às vísceras, que as mortes de hoje precisam de ter voz, rosto e biografemas; precisam de moldura melhor que um rectângulo de dígitos no noticiário.”

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Reuters/GUSTAVO GRAF MALDONADO

São 9h quando me sento à secretária, começo por ler os processos dos pacientes do dia. Hoje, maioritariamente, vou realizar consultas de luto. Em tempo de covid-19, mais do que psicóloga e hipnoterapeuta clínica e de saúde, identifico-me como facilitadora de processos de luto. Abracei nesta pandemia o projecto de acompanhar famílias enlutadas. Trabalho com processos de luto e perda há oito anos e continuo firme na crença que é urgente aprendermos a acolher os finais sem pressa — perdoem-me o paradoxo.

Somos um país em luto e defendo, do coração às vísceras, que as mortes de hoje precisam de ter voz, rosto e biografemas; precisam de moldura melhor do que um rectângulo de dígitos no noticiário. Precisamos de tornar visível quem parece tão invisível. Na morte, os rituais fúnebres fazem-se para os vivos e são, por força da cultura, muito importantes para a vivência de um luto sadio.

Um funeral “bonito” é aquele que é povoado, onde, por meio de abraços e lágrimas, se recebem pesares e se somam flores, “bonito” porque acolhe(dor), porque conforta e revela o quanto aquela pessoa era querida, estimada e honrada ou que eu, familiar, o sou. O suporte social percebido nessa ocasião, mesmo que não corresponda a nada concreto, é colo.

Nos funerais restritos de hoje, faz-se ouvir, por entre a quietude dos gestos, a estranheza. Somos mamíferos: faz-nos falta a matilha. Somos latinos: faz-nos falta beijar os nossos mortos. Não sabemos viver rituais de luto com regras de etiqueta ou à distância – à distância, sentimo-nos árvores caindo lá longe sem ninguém para nos escutar. Sentimo-nos amputados no ser, no sentir e na dignidade de ver morrer.

Antes da pandemia não tinha colocado um pezinho que fosse no mundo do atendimento digital, embora andasse a namorar a ideia. Acontecia, volta e meia, alguém recomendar o meu trabalho a outro alguém que morava a um significativo número de quilómetros de distância que inviabilizava um acompanhamento eficaz. Mesmo assim, as pessoas contactavam-me a lamentá-lo. Comecei a ponderar acompanhamento à distância como uma possibilidade futura, até que se tornou a única opção.

Na transição, alguns pacientes, avessos às tecnologias, suspenderam o acompanhamento psicoterapêutico, novos surgiram e caras que via em consultório, continuei a vê-las num ecrã. Não se tornou estranho, nem houve prejuízos na psicoterapia; e sei agora que o vínculo e a confiança se constroem do zero com naturalidade igual.

Os bastidores também não são diferentes: continuo a preparar consultas, materiais e tarefas e a costurar processos. Antes passava os dias a deslocar-me entre uma clínica e outra. Agora tenho lugar cativo no meu escritório meticulosamente arrumado. Ao início, estranhei a ausência de burburinho, as pantufas nos pés, o tempo sobrante dos dias. Foi talvez por isso que, munida de um bloco de post-its, preenchi uma parede com formações não para fazer depois, mas agora.

Desde então, tenho conjugado diariamente o verbo estudar – psicotraumatologia, hoje. Às 19h, na lista de tarefas ainda restam duas por riscar. As listas dos próximos dias deixam adivinhar cenário igual. A verdade é que, antes de me isolar em casa, tinha um livro a pingar dos meus dedos e uma odisseia de trabalho pela frente que me impedia de o fazer gente; algumas dezenas de dias volvidos, continuo a ter o livro a pingar dos meus dedos e uma odisseia de trabalho pela frente que me impede de o fazer carne, osso, poesia. Há épocas em que facilitar finais é mais importante do que finalizar criações. 

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