Com o lixo que apanha nas praias de Porto Santo, Vera faz artesanato

Assumiu um duplo compromisso com a sua ilha, Porto Santo, que o conselho consultivo da UNESCO recomendou que seja classificada como “reserva da biosfera”: a preservação do artesanato e a preservação do ambiente. Fundiu-os num minúsculo espaço a que chamou Loja do Profeta.

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Nos seus passeios de fim-de-semana pelas praias de Porto Santo, Vera Menezes (1980) e Francisco Velosa (1970) apanham os desperdícios que vão achando. Pela televisão e pela Internet viram pessoas de outras paragens a transformar lixo em arte ou artesanato. Ela seguiu-lhes o exemplo e contagiou-o. E, nas mãos de ambos, pedaços de madeira podem converter-se em relógios ou espelhos e fragmentos de plástico em variadas peças decorativas.

“Muito é plástico que existe no oceano e que devido às correntes marítimas vem cá parar”, esclarece Vera. “Derivados de utensílios dos barcos de pesca, derivados de equipamentos que os veleiros deixam cair ao mar quando passam por cá em direcção às Canárias... Já vi de tudo.”

Há alguma pesca lúdica em Porto Santo. A pesca comercial envolve só um punhado de embarcações artesanais dedicadas ao chicharro, à cavala e à boga, mas na plataforma insular há atuneiros na apanha de isco vivo e até na captura de atum-patudo, gaiado e voador.

Vera e o companheiro também encontram lixo produzido na ilha, embora menos. Arrasta-o a água das ribeiras ou deixa-o alguém por desleixo ou falta de respeito. Paus, cartuchos, sacos, garrafas e brinquedos, porventura engolidos pela areia, lavados pelas ondas, mastigados pelo oceano e devolvidos.

Não estão sozinhos nesta luta. Lá para Setembro até deverá arrancar o projecto Porto Santo Sem Lixo Marinho, promovido pela World Wide Fund for Nature, em parceria com a Associação Natureza Portugal e a Acção e Integração para a Cidadania Global. Começarão por identificar os fluxos e as descargas de resíduos e procurarão ajudar a optimizar a sua recolha e gestão.

Os tesouros da ilha

Singular, o areal que bordeja toda a costa sul e parte da costa norte. Formou-se a partir de restos fossilizados de animais marinhos e algas. Pelos estudos de João Baptista Silva, engenheiro geológico e investigador da Universidade de Aveiro, sabe-se que tem propriedades terapêuticas a água tépida e a areia carbonatada biogénica, rica em magnésio e estrôncio, um anti-inflamatório natural. Ajudam a aliviar quem padece de doenças do foro musculoesquelético.

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Embora pequena, toda a ilha tem muito que se lhe diga. Congrega dez geossítios (Praia, Zimbralinho, Morenos, Pico de Ana Ferreira, Serra de Dentro, Pico da Cabrita, Fonte da Areia, Ilhéu de Cima - Pedra do Sol, Ilhéu de Cima - Cabeço das Laranjas, Ilhéu da Cal) e sete sítios de geodiversidade (Pico Espigão, Serra de Fora, Pico Branco, Porto das Salemas, Pico de Juliana, Pico do Facho e Pico do Castelo). Pode não parecer, mas ali vive uma das mais diversas faunas de moluscos terrestres, incluindo espécies relíquia do período Terciário. O conselho consultivo da UNESCO já recomendou que seja classificada como “reserva da biosfera” - o anúncio oficial deverá acontecer em Outubro.

Nunca foi fácil viver em Porto Santo. Durante séculos, volta e meia havia saques de piratas e corsários. Sucedia-se a estiagem. Os pioneiros começaram por extrair seiva de dragoeiro. Os que se seguiram devotaram-se ao cultivo de cereais. A pobreza só deu tréguas com os fundos estruturais da União Europeia, o desenvolvimento do turismo e a instalação da Central Dessalinizadora, neste momento a única fonte de água potável com qualidade para o abastecimento público.

Já veio o dia de Vera Menezes partir, como fizeram tantos. Estudou Artes Gráficas no Instituto Politécnico de Tomar. Estagiou n’ O Bichinho de Conto, em Lisboa, e trabalhou na Papiro Editora, no Porto. A crise económica e financeira apanhou-a logo em 2008. Voltou com o plano de abrir uma loja de artesanato, juntando criações suas e de outros, dando aos visitantes a possibilidade de comprar algo feito ali e não a milhares de quilómetros. Com a economia naquele estado, antes quis abrir uma pequena reprografia na cidade, a Mil Folhas. Era dinheiro certo. “Havia uma na escola secundária para professores e alunos, mas no exterior não havia. Quem quisesse fazer um cartão-de-visita ou um flyer tinha de ir à Madeira.”

Quando o sector do turismo deu sinais de retoma (e até de expansão), um lojista do aeroporto desafiou-a a pintar umas aguareles. O rápido escoamento levou-a a pegar “no caderninho” que arrumara havia anos. “Pus-me a pensar naquilo com que nos identificamos e com que nos identificam.” O resultado desses primeiros exercícios é a história da ilha num postal.

A ilha num postal

Naquele postal cabe o Padrão dos Descobrimentos, uma escultura de António Aragão a que os porto-santenses chamam “pau de sabão”, a lembrar que aqui começou a expansão marítima portuguesa. E um dragoeiro, símbolo do “primeiro ciclo económico” da ilha: a seiva de dragoeiro ou sangue-de-drago tinha fins medicinais e era usada para tingir tecidos e envernizar violinos.

Cabe também um moinho de vento, testemunho da crónica escassez de água e da abundância de vento e símbolo do “segundo ciclo económico”, o da produção de trigo, cevada e centeio. E um barco de madeira, um dos carreireiros que ligavam esta ilha à ilha maior, a Madeira. Os últimos chamavam-se Arriaga, Maria Cristina, Devoto Santíssimo e Cruz Santa.

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Cabe ainda a antiga Casa das Águas, um edifício singular na arquitectura industrial da ilha. Durante grande parte do século XX ali se engarrafou uma água mineral bicarbonatada. E um burro, o antigo meio de transporte da ilha, nos primeiros anos de turismo reduzido a diversão infantil. E uma “lambeca”, o cremoso gelado que o senhor José Reis, que já está na casa dos 80 anos, vende em cone de bolacha. Nos meses mais quentes, a fila, às vezes, estende-se do seu quiosque até à porta da igreja.

Não podia faltar um caracol (há 116 espécies, 97 das quais endémicas). Nem um massaroco-do-Porto-Santo (arbusto nativo com inflorescências cor-de-rosa). Nem uma tabaibeira (figueira-da-índia). Embora estas fossem “terras de pão”, sempre se plantaram alguns legumes e frutos. Por ali crescem uvas de casta Caracol e Listrão rente ao chão. No tempo certo, vende-se uva de mesa, melão, melancia, tomate, figo, pitanga, tabaibo.

Vera fez uma colecção inteira. Um postal com todas as imagens icónicas e um postal para cada imagem. Mandou fazer peças magnéticas para frigorífico, canecas, t-shirts e sacos de pano. E começou a vender na sua reprografia, no Hotel Porto Santo, o mais antigo da ilha, e na Casa da Serra, um pólo de divulgação de cultura e tradição de Porto Santo, situado no extremo oriente.

“Aqui, ninguém fica rico”, resume. “Fechamos no início de Novembro. Até ao final de Fevereiro é muito calmo. Não se justifica abrir. Em Janeiro, nem há barco para a Madeira. No início de Março, voltamos a abrir. Entram as férias da Páscoa. Começa a haver mais voos.”

No Verão normal, Porto Santo chega a abrigar mais de 22 mil pessoas. Há movimento na ilha de relevo suave e matiz amarelada e na água azul-turquesa que a rodeia. No resto do ano, não fosse quem se desloca da Madeira para passar o fim-de-semana, poucas caras desconhecidas haveria entre os pouco mais de cinco mil residentes. Só as dos nórdicos, encantados com a leveza do clima.

Este ano, com a crise da covid-19, quem sabe o que será? “Muitos negócios vão sofrer com isto tudo, pois vivemos dependentes do turismo. E penso que só a partir do próximo ano teremos retoma económica”, concede. “Eu abri o meu negócio no início da crise. E todas as pessoas diziam-me que não ia dar certo. Tive dificuldades, como é óbvio. Mas ultrapassei. E acredito que também vou ultrapassar novamente.”

A porta a seguir à reprografia abre-se, desde 2018, para a tão sonhada loja de artesanato. Vera cumpre, com o companheiro, a missão de “colmatar uma lacuna no comércio de souvenirs na ilha do Porto Santo, com a criação de uma imagem gráfica que valorize a identidade do povo”.

Chama-se Loja do Profeta. Houve quem lhe dissesse que não, cruzes, credo, que vergonha, que tivesse juízo, ora agora, profetas é o que os madeirenses chamam aos porto-santenses. Vera fez orelhas moucas. “Tinha de ser um nome que identificasse o Porto Santo. O ‘profeta’ diz-nos muito, em vários sentidos. Só podia escolher este nome.” E já criou uma imagem do afamado “profeta”, que outra artesã, Flor Fernandes, materializou em barro.

Não haverá, na ilha de Porto Santo, quem não saiba de onde vem aquele nome. Escreveu Gaspar Frutuoso que, em 1532, um tal de Fernão Nunes, um “montanhês, criador e lavrador” conhecido por Bravo, foi ter com uma sobrinha, Filipa Nunes, “em cama tolhida, paralítica sem se poder mandar, nem mover da cinta para baixo”, e disse-lhe que o “Espírito Santo o mandava ter com ela para que ambos pregassem ao povo daquela ilha e lhe dissessem seus pecados”. O fervor foi tal que muitos confessaram-se publicamente e desataram a rezar pela remissão dos seus pecados. Avisado, o corregedor João Afonseca precipitou-se para a ilha. Tio e sobrinha foram detidos, julgados e condenados a ficar à porta da Sé de Évora, à hora da missa, com um cartaz que dizia "profetas do Porto Santo”.

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“Foi criada uma história de horror em torno de um homem que tentou mostrar às pessoas que a maneira como os ‘senhores’/ donos dos terrenos tratavam os outros estava errada”, comenta ela. “Tentou mostrar que a Igreja ‘extorquia’ dinheiro às pessoas que nada tinham. E foi preso. Há floreados que tornam a história mais caricata por forma a culpá-lo. Ao longo dos séculos, foi assim e ainda hoje é, tentando silenciar as pessoas. Mas este é o meu ponto de vista. Nem todos acreditam nisto e nem todos gostam de ser chamados de profetas.”

A loja é um espaço exíguo e repleto de peças distintas. “Todos os dias vão aparecendo mais coisas”, orgulha-se. “Consegui que me fizessem os barcos de folha de palmeira que todas as crianças usavam aqui nas suas brincadeiras”, exemplifica. “Estou a fazer os cestos de cana vieira porque faleceram os únicos senhores que sabiam fazer.” Também já tentou aprender a fazer os chapéus de palmito, folha tenra da palmeira-das-canárias, que terão começado a ser feitos no segundo quartel do século XIX por influência dos emigrantes do Havai, mas fica-se pelas miniaturas. “Para recompensar o trabalho, teriam de ser vendidos pelo menos a 70 euros.”

Já só Maria Otília Melim, de 76 anos, e a irmã, Maria Amélia, de 89, fazem os chapéus de palmito. “Tenho uma neta que sabe fazer, mas não para continuar”, diz Otília, mostrando exemplares de chapéus de aba larga, carteiras, mochilas, bolsas para telemóvel. “Ninguém quer continuar porque isto não dá resultado. Para fazer um chapéu são três dias, pelo menos. Quem é que quer trabalhar três dias para ganhar 40 euros?”

“Tentar manter viva a nossa tradição é muito difícil”, suspira Vera. Essa é uma das suas lutas. A preservação do ambiente é outra. E ela associou-as.

Desenvolvimento sustentável

Antes de a candidatura à Rede Mundial de Reservas da Biosfera, coordenada pela bióloga Susana Fontinha, ter sido entregue na UNESCO, em Setembro de 2019, várias pessoas foram convidadas a assumir um compromisso com uma visão de futuro sustentável. Vera foi uma delas.

No dossier, enquanto candidata a reserva, Porto Santo reivindica um lugar pioneiro em matéria de sustentabilidade, pelo facto de ter sido “o primeiro lugar do país a ter um parque eólico para produção de electricidade; […] o primeiro [...] onde foram estudadas e construídas casas solares passivas, auto-suficientes em aquecimento e arrefecimento; [o primeiro] onde se instalou um projecto-piloto para dessalinizar a água do mar através da energia solar”. Afirma a procura de um lugar de referência no que “toca à gestão inteligente de uma rede eléctrica insular e à geração de energia de forma sustentável, para satisfazer as necessidades energéticas locais a partir de fontes não fósseis”. E declara que que quer ser “um destino turístico de elevado reconhecimento internacional nas áreas da natureza, saúde e bem-estar”.

Vera está a cumprir o seu duplo compromisso. Nem na pandemia de covid-19 parou de resgatar o artesanato tradicional e de criar um novo. Experimentou fazer cestos de cana vieira, aprendeu vários pontos de crochet, pintou aguarelas, madeiras, pedra, lapas. Reaproveita lapas servidas num restaurante local para pintar os ícones de Porto Santo e fazer magnéticos para frigorífico. “Os turistas gostam, os residentes ainda não sabem bem se gostam.”

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