Vítimas da covid-19

Como respondemos eticamente a todas as vítimas? As contabilizadas, as colaterais, as transparentes, as desconhecidas, as anunciadas, as subsequentes?

Há números que nos entram em casa todos os dias, neste tempo de pandemia: são os números dos novos infectados, mas também dos mais recentes recuperados, são os números dos que estão internados e dos que entraram para os cuidados intensivos, mas também dos que conseguiram sair da fase crítica e dos que tiveram alta hospitalar, e são também os números dos óbitos, das pessoas que faleceram e que são as maiores vítimas da covid-19, as únicas verdadeiramente irrecuperáveis. Estas são as vítimas contabilizadas.

Mas há outras pessoas que sofrem. São os familiares de quem morreu e a quem não confortaram, de quem não se despediram e a quem não acompanharam ao túmulo; e são os familiares de todos os infectados na sua ansiedade pelo presente e angústia pelo futuro, na frustração do seu afastamento físico. São vítimas colaterais.

E depois há os que se encontram no primeiro plano, os profissionais de saúde, que as nossas preocupações particulares tornam por vezes invisíveis. E eles sofrem em todas as frentes: fisicamente, num trabalho intenso sem horário, mas sobretudo psicologicamente, pela inevitável partilha do sofrimento dos outros; sofrem pelos seus filhos, cônjuges e pais que deixaram para cuidar de outros, frequentemente vivendo fora de casa por tempo indeterminado com o receio de infectar quem amam, mais do que a si próprios. E, todavia, os profissionais de saúde são (13% dos) infectados. São infectados por, não tendo abandonado os seus doentes, serem abandonados pela tutela quando não têm os meios necessários e suficientes para se protegerem. E também morrem. O número de profissionais que sucumbiram à covid-19 é impressionante, simultaneamente dramático e heróico, dando a sua vida para salvar a vida de outros, que não conheciam. São todos vítimas transparentes.

Há ainda outras vítimas de que ouvimos falar remotamente desde o irromper da pandemia no nosso país, mas que só agora começam a ser vagamente contabilizadas. Aquelas cujas cirurgias foram adiadas, cujas consultas não se realizaram, cuja necessidade de assistência clínica foi suspensa por receio de se dirigirem a um hospital, a um centro de saúde, ao seu médico de família, entretanto deslocado para outro serviço. Hoje temos mais consciência do sofrimento, por exemplo, de doentes oncológicos, cujo cancro progride enquanto a espera se alonga; ou das crianças que não estão a ser vacinadas, ficando expostas a doenças evitáveis. Sabemos hoje também que o número de óbitos em Portugal em tempo de pandemia aumentou cerca de cinco vezes mais, para além do que a covid-19 pode explicar, sendo apenas justificável pelas dificuldades de acesso a cuidados de saúde. São também vítimas da covid-19. São vítimas desconhecidas.

Com o desconfinamento a iniciar-se, a percepção geral é a que que o pior já passou. Terminaremos finalmente este rol de vítimas… Porém, na comunicação ziguezagueante recheada de interpretações criativas acerca dos números por que se pauta o desconfinamento – o R0 (taxa de infeção por pessoa) que deveríamos atingir antes começar a sair, a data (prematura?) em que se inicia o alívio das restrições e o ritmo (apressado?) a que se chega à última fase de abertura –, percebemos claramente que o número de infectados vai aumentar e, por consequência, o número de internados e, por consequência, o número de doentes críticos e, por consequência, o número de falecimentos. Mas – afiançam-nos – sempre num cálculo dentro da margem da capacidade do Sistema Nacional de Saúde. São vítimas anunciadas.

E à margem dos cuidados de saúde, multiplicam-se as vítimas da paralisação económica e da degradação social. São vítimas subsequentes.

Como respondemos eticamente a todas as vítimas? As contabilizadas, as colaterais, as transparentes, as desconhecidas, as anunciadas, as subsequentes?

Podemo-nos sentir esmagados e impotentes e culpar o coronavírus. Porém, o vírus não é bom nem é mau; é uma entidade biológica que é como é, não podendo ser diferentemente. De facto, só as acções humanas podem ser avaliadas eticamente, porque podem ser sempre outras, más ou boas, piores ou melhores. A pandemia é a nossa circunstância. Mas como lhe reagimos e como agimos em relação às vitimas é nossa responsabilidade. E esta exerce-se convertendo o poder em dever, e cada um respondendo às vitimas proporcionalmente ao poder que tem.

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