Ainda se o mundo fosse como o Big Brother

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Como todos, também tenho medo, mas, tal como diz a professora Brené Brown, da Universidade de Houston, a coragem é uma competência que se aprende.” Januário Torgal Ferreira, bispo emérito das Forças Armadas e Segurança

Resistir: ela acende o fósforo

O título do livro de memórias que acaba de editar não podia ser mais explícito: Resistance. Tori Amos conta como desde o seu lugar privilegiado de pianista de bares em Washington nos anos 1980 via os lobbyistas acertar os seus negócios: “No livro chamo-lhe o ‘aperto de mão líquido’”, conta, em entrevista à New Yorker. A criança prodígio que estudou no conservatório até ser expulsa aos 11 anos (o seu primeiro fracasso) e começou a tocar piano em bares aos 13 anos levanta uma questão importante para os artistas nos dias que correm: “O artista tem responsabilidades quando a democracia está a ser posta em causa?” E responde dizendo que “todos os artistas estão a ser chamados neste momento” porque têm a obrigação de não ceder ao encolher de ombros, ao cinismo de que não vale a pena porque tudo está corrompido. “Eu estou aqui para acender o fósforo e fazer-te levantar o rabo”, sublinha a compositora, pianista e cantora no seu chamamento aos artistas americanos. “Ditadura é ditadura – temos de diagnosticar os sinais e continuar a ver e ouvir e não pôr a cabeça na areia, fingindo que não voltará a passar”. Para a criadora de Little Earthquakes, o seu primeiro álbum a solo em 1992, é muito simples, ela não quer fazer parte da “América que perdeu a democracia”.

Um dia de coragem

Desde 1996 que, na Argentina, 30 de Abril assinala o Dia da Coragem Civil. A iniciativa homenageia as mulheres que ficaram conhecidas pelas Mães da Praça de Maio que, em 1977, em plena ditadura militar, começaram a sair à rua todas as semanas para exigir informações sobre os seus filhos desaparecidos. A ditadura argentina foi das mais ferozes e sanguinárias da América Latina, responsável pela morte e desaparecimento de 30 mil pessoas, e a visão daquelas mães, a maioria donas de casa sem actividade política que escolhiam arriscar a vida (três fundadoras foram sequestradas, torturadas e assassinadas em 1977) para saber informações sobre os filhos, tornou-se maior que elas próprias, ajudou a destapar os crimes contra a humanidade cometidos pelas chefias militares, a rede de centros de tortura, a política sistemática de desaparecimento de corpos para deixar os mortos num limbo mentiroso e, muito importante também, ajudou a recuperar a história de muitas crianças raptadas aos seus pais assassinados e entregues a famílias de militares para serem educadas. Como disse ao Página/12 Norma Cortés, das Madres Línea Fundadora: “O que me traz este dia é uma grande emoção pelas mães que fomos, desde o princípio, quando saímos à rua sem medir os perigos e sem ter dúvidas”.

Duvidar de homens com soluções simples

Não se resolvem problemas complexos com simples soluções mágicas, mas é preciso estar atento porque os que aproveitaram a crise de 2008 já se estão a mexer para ganhar vantagem com a crise da covid-19. Naomi Klein, em entrevista ao Haaretz, sublinha que “não haverá nenhum regresso à normalidade” e que é preciso “desconfiar de quem assumir o papel de homem forte, principalmente os líderes que deixaram as nossas sociedades tão vulneráveis”. O filósofo do pensamento económico Philip Mirowsky, autor de Never Let a Serious Crisis Go to Waste, em entrevista ao Libération, está convencido que virá aí “um momento de estabilização plutocrática” em que “um grupo muito pequeno de pessoas açambarcará imenso poder”. Ou seja, os mesmos que “nos falharam, profunda e de forma assassina”, no dizer da autora canadiana, serão aqueles que, na perspectiva de Mirowsky, acabarão por controlar a saída da pandemia. “Um mercado ainda menos regulamentado, uma indústria farmacêutica ainda mais forte e uma acentuação do discurso populista: eis o futuro que nos espera”, conclui este. Como diz Klein, é preciso coragem para abrir os olhos e evitar esse caminho: “O trabalho que precisamos é de reconstruição e reimaginação – não podemos voltar ao que éramos antes da crise nos atingir.”

A esperança está no Big Brother

Um ano depois de premiar uma concorrente branca notoriamente racista, aos 20 anos de idade o Big Brother Brasil escolheu outra mulher, mas esta médica, negra e feminista como a grande vencedora da sua edição de aniversário, a mais comentada de todos os tempos, dizem os jornais brasileiros. A anestesista de 35 anos de São Paulo, passista de samba da Mocidade Alegre, contrariou os prognósticos e as estatísticas da mesma forma que foi ultrapassando ao longo da vida os obstáculos a quem como ela nasceu pobre e negra no Brasil, um dos países mais desiguais do mundo. “Eu cresci e, para lutar contra a desigualdade, quero puxar mais gente junto comigo”, afirmou Thelma Assis ou Thelminha, como é conhecida. Abandonada pela mãe aos três meses, cresceu numa família adoptiva que a incentivou a estudar. Na Faculdade de Medicina, onde entrou com uma bolsa de 300 reais mensais que não chegava para pagar o curso, era a única negra entre uma centena de alunos. “As coisas são complicadas quando se é mulher, preta e de classe social desfavorecida. Dar o direito à educação significa garantir mudanças para toda uma geração. Eu tive bolsa. Vou mudar a geração dos meus filhos, dos meus netos”, afirmou, citada pelo El País Brasil.

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