Covid-19: metade da força de trabalho mundial em risco de subsistência

Queda no rendimento de quem trabalha em actividades informais é de 81% em África. “Não ter salário significa não ter comida”, avisa o director-geral da Organização Internacional do Trabalho.

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A queda no número de horas de trabalho em África é de 9,6% Nuno Ferreira Santos

Os impactos no emprego associados à pandemia de covid-19 estão a revelar-se mais gravosos do que o previsto inicialmente, com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) a prever uma queda “significativamente pior” no número de horas de trabalho neste segundo trimestre (Abril a Junho) do que se previa há poucas semanas.

Os impactos são mais visíveis entre os cidadãos que estão na chamada “economia informal” e “à medida que as perdas de emprego se multiplicam, quase metade da força de trabalho a nível mundial corre o risco de perder meios de subsistência”, avisa a agência das Nações Unidas, num relatório divulgado nesta quarta-feira com o terceiro balanço de monitorização sobre os impactos do surto no mercado laboral.

“Comparando com os níveis pré-crise (quarto trimestre de 2019), espera-se agora [para este segundo trimestre] uma deterioração de 10,5%, equivalente a 305 milhões de empregos a tempo completo (tendo por base uma semana de trabalho de 48 horas)”, o que, segundo a OIT, tem que ver com o resultado do “prolongamento e extensão” das medidas de confinamento nos vários continentes.

Há apenas duas semanas, na monitorização anterior, a OIT apontava para uma estimativa de redução menor, de 6,7%, equivalente a 195 milhões de trabalhadores a tempo completo”. As consequências estão “a agravar-se em relação [ao que se estimava há] duas semanas”, disse em conferência de imprensa online o director-geral da OIT, o britânico Guy Ryder.

Ao todo, há cerca de 2000 milhões de trabalhadores na economia informal e são 1,6 mil milhões os que “correm o risco iminente de verem os seus meios de subsistência destruídos”, adverte a OIT, lembrando que este número de trabalhadores em risco corresponde a “quase metade da força de trabalho a nível mundial”, que ascende a 3,3 mil milhões de pessoas.

Porque considera ser urgente adoptar medidas que apoiem os trabalhadores e as empresas, em particular as mais pequenas, e os cidadãos que “trabalham na economia informal”, a agência da ONU aconselha a que as medidas de relançamento económico sejam coordenadas a nível internacional e sigam “uma abordagem geradora de emprego, sustentada em políticas e instituições de emprego mais fortes, sistemas de protecção social” com recursos abrangentes.

Perder mais de metade do rendimento

Só no primeiro mês da crise, a OIT calcula que as pessoas que trabalham no sector informal tenham registado uma queda de 60% nos seus rendimentos. Em África, essa perda é a mais elevada — é de 81%; na Europa e na Ásia Central, é de 70%; e nas Américas é de 21,6%.

A economia informal refere-se às actividades económicas em que os trabalhadores e unidades de produção operam à margem da lei, ou não são abrangidos na prática por ela mesmo que operem no âmbito da lei, ou quando não vêem respeitada essa legislação.

São as pessoas “mais vulneráveis” e, diz director-geral da OIT, é por isso “ainda mais urgente” proteger estes trabalhadores. “Para milhões de trabalhadores e trabalhadoras, não ter salário significa não ter comida, não ter segurança e não ter futuro. Presentemente, milhões de empresas em todo o mundo mal respiram. Não têm poupanças ou acesso a crédito. Estas são as faces reais do mundo do trabalho. Se não as ajudarmos agora, irão simplesmente desaparecer”, vinca o britânico Guy Ryder.

No relatório, a organização refere que “a crise está a causar uma redução sem precedentes na actividade económica e nas horas de trabalho”.

“A estimativa de horas perdidas no primeiro trimestre é de 4,5% (equivalente a aproximadamente 130 milhões de empregos a tempo completo, assumindo uma semana de trabalho de 48 horas) em comparação com os níveis pré-crise (o quarto trimestre de 2019)”. No entanto, estas estimativas têm um “um grau de incerteza substancial”, porque os inquéritos à força de trabalho para os primeiros três meses do ano só estão disponíveis para alguns países, relativamente a outros os dados são incompletos e há ainda “muitos países” em relação aos quais não há dados disponíveis.

Já para o segundo trimestre, as estimativas são mais gravosas, com a tal previsão de queda de 10,5% face aos últimos três meses de 2019, a que a OIT chama “o último trimestre pré-crise”.

Essa descida é maior nos países de rendimento intermédio (12,5%), seguindo-se os países de rendimento mais elevado (11,6%), os países de baixo rendimento (8,8%) e países de rendimento médio alto (8,7%). Olhando por regiões mundiais: a queda é de 12,4% nas Américas; de 11,8% na Europa e Ásia Central; de 10,3% nos Estados Árabes; de 10% na Ásia e Pacífico; e de 9,6% em África.

Fim de pequenas empresas

Além de o relatório reflectir já os dados sobre as três primeiras semanas de Abril, há outros dois factores que explicam uma previsão mais pessimista: por um lado, o prolongamento e a extensão de “rigorosas medidas de contenção em muitos países onde essas medidas já estavam implementadas causaram um impacto cumulativo na actividade laboral”; por outro, houve mais países a decretar medidas de contenção, incluindo o encerramento temporário de locais de trabalho.

O surto sanitário está a ter consequências em vários sectores. Segundo a OIT, há “mais de 436 milhões de empresas” que enfrentam “elevados riscos de perturbações graves”. As mais atingidas são negócios de quatro sectores de actividade: empresas de comércio a grosso e retalho (232 milhões), empresas na área da produção (111 milhões), do sector do alojamento local e restaurantes (51 milhões) e do sector imobiliário e outras actividades empresariais (42 milhões). São quatro sectores que, lembra a OIT, representam juntos mais de 30% do Produto Interno Bruto em termos médios.

“Embora as pequenas empresas em todo o mundo tenham um papel importante como criadoras de empregos, particularmente nos países de rendimento baixo e médio, muitas vezes não têm acesso a crédito, têm poucos activos e menor probabilidade de beneficiarem em geral das medidas orçamentais e dos pacotes de estímulo relacionados com a crise actual”. Por essa razão, a OIT considera que, “tal como se verificou após a crise financeira global, espera-se que o número de pequenas empresas em economias desenvolvidas diminua devido à falência generalizada de empresas”.

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