Investigação à interferência na polícia por Bolsonaro deixa perfume do impeachment no ar

Presidente vai ser investigado para saber se tentou interferir na Polícia Federal. As negociações com o “centrão” garantem, por agora, o bloqueio das tentativas de impeachment.

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Se a popularidade de Bolsonaro cair de forma acentuada, a destituição torna-se um cenário mais provável Reuters/UESLEI MARCELINO

Falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de justiça e corrupção passiva privilegiada. É pelas suspeitas destes crimes que o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, vai ser investigado pelo Ministério Público Federal na sequência das acusações feitas pelo ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, sobre a eventual interferência do chefe de Estado na Polícia Federal (PF).

A autorização para que o inquérito fosse aberto foi dada pelo juiz do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, que lembrou, no seu despacho, que “ninguém, absolutamente ninguém, tem legitimidade para transgredir e vilipendiar as leis e a Constituição”. Se as acusações feitas por Moro vierem a revelar-se infundadas, então será o ex-ministro e ex-juiz a federal a responder por denúncia caluniosa. Um dos primeiros actos da investigação deverá ser a convocatória de Moro para depor.

A abertura de uma investigação criminal a visar Bolsonaro abre um período de muita incerteza institucional no Brasil, a começar desde logo pelas interrogações sobre se o Presidente conseguirá manter-se no cargo até ao final do mandato.

Até ao início desta semana, na mesa do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, repousavam 29 pedidos de impeachment contra Bolsonaro por crimes de responsabilidade, motivados pelas causas mais diversas, desde a desvalorização das recomendações médicas face à pandemia da covid-19 até às acusações de Moro. Mas a destituição no Brasil é, primeiro que tudo, um processo de mérito político, para o qual é fundamental uma conjuntura muito específica, que combina a falta de apoio popular, um reduzido respaldo parlamentar e uma vontade política forte de afastamento do Presidente. O próprio Maia dizia esta segunda-feira que é preciso “cuidado” ao falar-se de impeachment e que a prioridade é o combate à pandemia.

A demissão de Moro “aumenta bastante a possibilidade de um impeachment”, nota o professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) Pablo Ortellado, contactado pelo PÚBLICO. Mas ainda é cedo para colocar esse cenário, embora uma sondagem publicada esta semana pelo Atlas Político mostre, pela primeira vez, que mais de metade dos brasileiros apoia a destituição do Presidente.

“Marca a consolidação de uma maioria”, afirma Ortellado, que lembra, no entanto, que isso “não é suficiente para um processo de impeachment tramitar”. “O apoio a Bolsonaro, que está hoje na casa dos 30%, teria de cair para 15 ou 10% para que um processo de impeachment seja viável. Até lá ele está mais ou menos seguro”, diz o especialista.

Nas mãos do “centrão”

Assim que saiu do Governo, Moro levou com ele uma importante franja de apoio popular. Grande parte dos votos que Bolsonaro recebeu nas eleições de 2018 vieram de brasileiros para quem os casos de corrupção a envolver os governos anteriores os fizeram perder a fé nos políticos tradicionais. A permanência no Governo do juiz responsável pelas condenações de altas figuras da política nacional, entre os quais o ex-Presidente Lula da Silva, como ministro da Justiça, garantia a Bolsonaro o apoio dessas fileiras.

Com a demissão do ex-juiz, Bolsonaro “não perdeu apenas o apoio de Moro”, observa Ortellado. “Ganhou novos adversários, pessoas ligadas ao movimento anti-corrupção, que derrubaram a ex-Presidente Dilma Rousseff e foram fundamentais para a sua eleição, e que agora trabalham activamente contra ele”, diz. Por isso, os analistas antecipavam uma queda na popularidade de Bolsonaro assim que saírem as primeiras sondagens após a demissão de Moro. Um primeiro estudo da Datafolha mostra que 52% dos inquiridos acredita nas acusações de Moro, enquanto apenas 20% confia na versão de Bolsonaro sobre o episódio da PF.

No entanto, é possível que essa perda não seja tão acentuada como esperado. Ortellado chama a atenção para o efeito do pagamento do auxílio emergencial de 600 reais (99 euros) para as famílias mais carenciadas em virtude da pandemia da covid-19. “Embora seja uma medida do Congresso, Bolsonaro está a tentar apresentá-la como sua”, diz o professor da USP, que não exclui que, ao receberem uma prestação governamental, por vezes superior ao rendimento de um agregado, os eleitores mais pobres sintam gratidão por Bolsonaro e colmatem a perda de apoio da classe média.

Mais decisivo para travar o avanço dos processos de impeachment é, no entanto, a aproximação de Bolsonaro aos partidos do chamado “centrão”, um grupo que congrega numerosas bancadas parlamentares desprovidas de ideologia, mas essenciais para a formação de maiorias no Congresso. Nas últimas semanas, Bolsonaro tem tido encontros com vários líderes partidários e, de acordo com a imprensa, o Governo conta com uma base parlamentar alargada, que lhe garante o derrube de qualquer tentativa de impeachment.

No entanto, as negociações implicam a entrega de cargos em organismos públicos e até de ministérios a políticos destes partidos, contrariando uma das grandes promessas do ex-capitão, que recusava recorrer a este tipo de práticas. “O cálculo de Bolsonaro foi o seguinte: ele sacrifica o Moro, perde um pouco, no entanto, ganha apoio parlamentar, porque fez aliança com o ‘centrão’, esses partidos com pouca convicção política e que trocam apoio por cargos”, resume Ortellado.

O apoio destes partidos é conhecido por ser pouco fiável, como comprova a recta final do mandato de Dilma Rousseff. E Bolsonaro está no meio de várias frentes de tiro, para além da investigação sobre as acusações de Moro. O Congresso deverá abrir em simultâneo uma comissão de inquérito sobre as suspeitas de interferência na PF e há ainda revelações com potencial destrutivo que podem surgir de investigações que implicam os filhos do Presidente. “Vai ser praticamente impossível o Maia não avançar nessas circunstâncias”, prevê Pablo Ortellado.

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