Debaixo de um céu (quase) sem aviões, a lei do ruído passou a ser cumprida no Campo Grande

Tal como há quase um ano, os ambientalistas da Zero voltaram a medir o ruído numa zona de Lisboa muito afectada pelo som constante da passagem dos aviões de e para a Portela. A diferença é assinalável.

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No dia 23 de Abril só houve 17 movimentos de aviões a descolar e aterrar na Portela Andreia Gomes Carvalho

A legislação do ruído tem sido cumprida, nas últimas semanas, no Campo Grande, em Lisboa. O problema é que isso só está a ser conseguido por causa do Estado de Emergência e da fortíssima redução dos movimentos de aeronaves no Aeroporto da Portela, como constatou a associação ambientalista Zero, que voltou a fazer agora, neste ponto da cidade, um exercício de medição do ruído ambiente, semelhante a outro realizado em Julho do ano passado.

Quando ali esteve em Julho do ano passado, para dar números (medidos em decibéis) a uma percepção evidente a quem mora nesta e noutras zonas de Lisboa mais próximas da Portela, a Zero percebeu que somado ao ruído de base, do tráfego automóvel, que já deixava pouca margem abaixo dos limites legais, o barulho dos aviões a descolar ou a aterrar acrescentava ao quotidiano dos habitantes toda uma camada de poluição sonora já em clara violação da lei.

Gráfico da medição feita em Julho de 2019 no Campo Grande DR
Gráfico da medição feita em Abril de 2020 no Campo Grande DR
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Gráfico da medição feita em Julho de 2019 no Campo Grande DR

Aproveitando o inesperado da actual situação, a Zero decidiu voltar ao local do crime com as mesmas ferramentas - um sonómetro devidamente homologado e certificado, operado pela empresa NoiseLab - para um exercício de comparação que ninguém esperava poder realizar em condições normais. A associação bem tem pedido que se reduzam os movimentos à noite, mas foi preciso um vírus, e uma pandemia global que nestes dois dias atirou para quatro o número de aviões a passar ali no período nocturno, para, por más razões, se perceber o impacto disso no ambiente urbano.

O aeroporto não parou, como constaram por exemplo no dia 23, em que houve 17 movimentos aéreos. Mas isso significa uma redução na sua actividade tão forte que o efeito é notório nos gráficos e tabelas que resultaram deste trabalho. Que para o dirigente da Zero Francisco Ferreira, mostra “que é impossível cumprir a legislação em Lisboa com o aeroporto em funcionamento normal” e que “a sua relocalização tem de ser equacionada no médio prazo”. 

A medição foi contínua entre as 16 horas do dia 22 e as 15 horas do dia 24 de Abril. No ano passado tinha decorrido entre 4 e 6 de Julho. Na comparação dos dois períodos constatou-se uma a diferença de 12 dBA relativamente aos indicadores Lden (média ponderada, para 24h, da exposição ao ruído nos períodos diurno, entardecer e noite) e Ln (exposição no período nocturno). “Considerando que uma variação de 10 dB no nível sonoro corresponde tipicamente a uma sensação do dobro em termos de sensação auditiva, a diferença de 12 dBA verificada está claramente acima dessa diferença”, assinala a Zero. 

A Associação lembra ainda que se “deve também ter em conta que a escala de decibel é logarítmica e a intensidade sonora duplica a cada 3 dBA. Em Julho de 2019, o Lden, que não pode ultrapassar para a zona em causa (zona mista / zona próxima de infra-estrutura aeroportuária) os 65 dBA, assumiu um valor de 74 dBA, em clara ultrapassagem do valor limite legal (mais 9 dBA), o mesmo tendo acontecido relativamente ao Ln (correspondente ao período nocturno) que na altura ultrapassou o valor legal em 11 dBA. 

E o que isto permite concluir. Para a Zero duas coisas importantes. A primeira é de que de nada vale fazer mapas de ruído e planos de acção que não tenham em conta o tráfego aéreo. Mexer nas ruas e circulação automóvel terá algum efeito marginal, mas o grande problema, insiste Francisco Ferreira, vem de cima. E se “não se pode mudar um aeroporto de lugar de um dia para o outro”, admite, estes dados deveriam levar o Governo a reflectir sobre o impacto, no bem-estar e na saúde da população afecta, do actual projecto de expansão da Portela e prolongamento da sua actividade por mais quatro décadas, se avançar, como pretende o executivo, a construção de uma infra-estrutura complementar no Montijo.

“Não quero defender aqui outras soluções, mas julgo que é óbvio que se tornará insustentável manter este modelo por 40 anos”, insiste Francisco Ferreira.

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