Há funerárias que se recusam a ir buscar corpos a casa: “Quem disser que não tem medo é mentiroso”

“Agências mais pequenas, cujos proprietários têm mais idade, arranjam desculpas: que estão com muito serviço, que não conseguem ir buscar o corpo tão cedo”, conta José Júnior, funcionário de uma funerária. A solução é chamar os bombeiros que transportam os corpos para o Instituto de Medicina legal

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LUSA/MIGUEL A. LOPES

José Júnior trabalha numa funerária algarvia e quando o patrão o manda ir recolher o cadáver de alguém que morreu em casa põe-se a caminho e faz o serviço. Mas apesar de ter recebido formação para lidar com situações inesperadas e do equipamento de protecção, admite não lhe ser fácil: “Tenho filhos em casa. Quem disser que não tem medo é mentiroso.”

É por isso que quando colegas de profissão o contactam a pedir conselho em tempos de pandemia, José Júnior, que tem uma página no Facebook chamada Cangalheiros com perto de meia centena de membros, lhes dá sempre o mesmo conselho: “Se você tem medo ou não tem formação para lidar com equipamentos de protecção individual o melhor é resguardar-se.”

A prática de que quase ninguém quer falar é confirmada por um dirigente associativo do sector: há funerárias a recusarem-se a ir buscar os corpos de quem morre em casa. Enquanto nos hospitais os cadáveres de quem foi diagnosticado com o novo coronavírus já são entregues aos agentes funerários devidamente preparados – são acondicionados em dois sacos com uma camada de desinfectante entre eles –, a recolha ao domicílio apresenta vários riscos, além de uma eventual falta de diagnóstico. “O problema não são os cadáveres, mas as pessoas que viviam com quem morreu, que podem estar infectadas”, explica o presidente da Associação dos Agentes Funerários de Portugal, Vítor Teixeira. Segundo a Organização Mundial de Saúde, embora o vírus não morra com a pessoa, o perigo de contágio de um cadáver é reduzido, uma vez que se aloja nos pulmões e noutros órgãos. O risco apenas existirá durante a autópsia ou procedimentos de lavagem interna. Seja como for, os agentes funerários são aconselhados a usar equipamento de protecção e a terem cuidado com os fluidos corporais.

E se existem agências que optaram por tratar grande parte dos mortos com que lidam como se tivessem covid-19, também há “quem não esteja disponível para recolher corpos no domicílio, para salvaguardar os seus funcionários”, assume o mesmo dirigente. Para as famílias, a alternativa passa por chamar os bombeiros, que transportam o corpo do falecido para o Instituto de Medicina Legal. “A maior parte das agências já estão preparadas” para enfrentar a pandemia, diz Vítor Teixeira. “Mas muitas assumem esta postura.”

“Quando alguém morre em casa ou num lar de terceira idade há muitas agências a aconselharem que o cadáver seja levado para o Instituto de Medicina Legal, para verificar se tem covid-19. E há funerárias a recusarem-se a levar esses corpos”, corrobora Paulo Moniz Carreira, director-geral de negócio da Servilusa, agência que diz ter gasto 300 mil euros em material de protecção para os seus empregados. “Nós não temos esse entendimento. Mas nos lares que tenham tido um caso ou em que tenha havido doenças respiratórias tratamos cada cadáver como se tivesse sido coronavírus”, explica.

Até à passada semana, 84% dos 85 cadáveres infectados de que a Servilusa tinha tomado conta desde o início da pandemia haviam sido cremados – procedimento que, não sendo obrigatório, tem vindo a generalizar-se nesta altura, muito embora ainda haja quem continue a optar pelo enterro. Os agentes funerários queixam-se de terem sido adoptados procedimentos muito diferenciados ao longo do país na forma como lidar com este fenómeno. “Já houve uma família impedida de entrar no cemitério” para sepultar um ente querido que morreu infectado, apesar de nada na lei o exigir, descreve Paulo Moniz Carreira.

José Júnior explica que com o medo que as pessoas ganharam de ir aos hospitais em casos de doenças que não a covid-19 há cada vez mais gente a morrer em casa. “E as funerárias mais pequenas, aquelas de carácter familiar, cujos proprietários já têm mais idade, arranjam desculpas: que estão com muito serviço, que não conseguem ir buscar o corpo tão  cedo...”, conta. “É legítimo fazerem-no, porque se trata de um ambiente muito hostil, desconhecido. Não sabem ao que vão. É uma minoria a recusar, mas fazem-no. Os bombeiros têm preparação, é melhor deixá-los serem eles a levar o corpo.”

“Há um medo generalizado, mesmo entre os funcionários das empresas que se dizem preparados”, resume o agente algarvio. “Não vou julgar os colegas que se recusam. Cada um sabe dos seus medos.”

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