O início era sexy, o difícil está no continuar

O continuar vem da persistência, da consistência e até da teimosia de ser fiel ao sentimento que nos fez arrancar. Esse é o grande desafio, lembrarmo-nos do primeiro dia e sermos fiéis a esse sentimento.

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LUSA/STEPHANIE LECOCQ

O difícil está no continuar. No início ouviam-se palmas, vestiam-nos capas de super-heróis e enchiam-nos a barriga de coisas boas e boa energia. No início, o entusiasmo, a adrenalina e os olhos do mundo postos em nós, empurravam-nos para um sentimento de invencibilidade. O início era sexy, o difícil está no continuar.

Lembro-me da minha primeira missão, em que dezenas e dezenas de amigos e familiares se despediram de mim, há 11 anos, para partir para as profundezas do Congo. Na minha última partida há uns meses estava sozinho no abraço que dei à minha mãe no aeroporto, para mergulhar no Sudão do Sul. Começar foi especial, talvez até mais bonito pela virgindade de tantas emoções, mas o difícil é continuar. E o continuar vem da persistência, da consistência e até da teimosia de ser fiel ao sentimento que nos fez arrancar. Esse é o grande desafio, lembrarmo-nos do primeiro dia e sermos fiéis a esse sentimento. E continuar...

Em Março de 2011 começou a guerra da Síria e o mundo enfureceu-se com tantas mortes. A guerra continuou, mas as nossas atenções, palavras e acções foram-se perdendo. Terramoto do Haiti, guerra do Iémen, ciclone Idaí, guerra do Congo, Líbia, Afeganistão, República Centro-Africana, etc., etc.... o difícil é manter o coração onde já não há atenção e a exigência mantém-se.

Infelizmente o SARS-Coronavirus-2 manter-se-á entre nós durante algum tempo, não vai desaparecer por “milagre”. E a exigência nos hospitais pode até aumentar. Já sem palmas, sem bolinhos e sem capas, os profissionais de saúde vão ter de continuar com o coração onde já não há atenção.

Quando o país reabrir, porque é inevitável que reabra, os profissionais de saúde vão ter de estar preparados para a segunda vaga, vão ter de assumir que as férias são apenas para os “outros”, vão ter de prolongar a dureza do afastamento das suas famílias, vão ter de continuar a trabalhar com medo da sua saúde e dos seus. Sem holofotes, vão ter de continuar...

A solidariedade vai ter de continuar. Se a realidade depende do ângulo e da perspectiva pela qual a vemos, do ponto de vista de quem arregaçou as mangas para ajudar os mais fracos, esta catástrofe humanitária consegue mostrar-nos rara beleza.

É incrível ver como pequenas e grandes organizações arrancaram ou reforçaram a sua acção social de proximidade com alma, com energia, com criatividade e com um coração gigante, organizados ou até desorganizados, têm feito pura magia, aproximando as pessoas mais frágeis num mundo que se prevê mais distante. Mas o difícil não é agora, o difícil é continuar...

Os hospitais estão mais frágeis e vão ser mais importantes do que nunca. O planeta está mais pobre, a fome no mundo duplicou, o desemprego em Portugal duplicará (ou mais), e mais do que nunca precisamos de olhar de frente a realidade à nossa volta, com coragem, determinação, humor e humanidade, e assim, escrever num papel a melhor versão de nós próprios, fiéis ao melhor dos nossos sentimentos, e continuar.

Arrancar é fundamental, mas o difícil está no continuar. Este é o maior desafio das nossas vidas. Mostremos carácter.

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