A app liberta ou algema?

A nova app que nos protegerá a todos de todos os infectados vai ser a chave para o “desconfinamento”. Eu creio que nos coloca perante uma opção ética fundamental acerca do nosso futuro comunitário.

Começa sempre assim… É uma nova tecnologia! O que é novo assusta. As pessoas não sabem como vai mexer com as suas vidas. Por isso, tendem a rejeitar o novo. Por isso também, toda a nova tecnologia se apresenta cuidadosamente embrulhada num atraente papel de presente. E até mesmo quando cria uma necessidade inexistente, é apresentada como satisfazendo um desejo profundo. Tem sido assim com as biotecnologias, que da sua originária finalidade terapêutica vêm resvalando para múltiplas utilizações sociais; é assim com as tecnologias digitais, que da sua originária intencionalidade para resolver problemas vêm a criar dependências.

Não, não sou “velha do Restelo” e aspiro a que a inovação tecnológica contribua para a realização das pessoas e promova o bem-estar da sociedade. Mas também não sou a “jovem inocente” dos filmes de aventuras que raramente percebe o que se passa à sua volta e mais frequentemente se deixa levar pelos acontecimentos.

Perguntar-se-á o leitor a que propósito surge este quase desabafo intimista… Por causa da produção iminente da nova app que nos protegerá a todos de todos os infectados e que os governos, um pouco por todo o mundo, esperam ansiosamente, qual crianças em véspera de Natal. Esta vai ser a chave para o “desconfinamento”! Eu creio que nos coloca perante uma opção ética fundamental acerca do nosso futuro comunitário.

Esta app, activa em vários países e que a Comissão Europeia agora recomenda, deverá ser descarregada para o telemóvel, permitindo que a entidade gestora, ao identificar um novo doente covid-19, identifique de imediato todas as pessoas com quem ele se cruzou desde que tem a app porque, afinal, registou todos os movimentos de todos os utilizadores. Ficaremos, assim, todos seguros, mesmo fora de casa.

Que ingenuidade (ou talvez hipocrisia): ainda há duas ou três semanas não devíamos usar máscaras porque nos iam dar uma falsa sensação de segurança e agora vamos andar de telemóvel em punho a sermos prevenidos de todos os infectados com quem nos cruzámos (o que, aliás, só funcionaria bem se todos tivéssemos sido testados. Fomos?). E ainda mais extraordinário é a seriedade com que se anuncia que, entre nós, democratas, nada será como na autoritária China, em que a app é obrigatória para se poder sair de casa e classifica os cidadãos por cores, as quais dão acessos diferenciados, sendo recolhidos não se sabe que dados, para que finalidades, acessíveis por quem… Esta app, de rastreio de todos os nossos passos a todas as horas do dia e da noite, e potencialmente de recolha de dados biológicos, entre nós, diz a Comissão Europeia, quer-se voluntária. Porém, – convenhamos – só será eficaz se for de uso comunitário. Quer-se preservando a privacidade de cada um. Porém, – reconheçamos – só actua convertendo os traços da nossa privacidade em informação de interesse público. Quer-se segura. Porém, – aceitemos – alguma entidade procederá à sua gestão. Quer-se destruída no fim da crise. Mas não sabemos que o digital é indelével?

Esta “varinha mágica”, que mais do que transportar-nos para longe do isolamento social é agitada para reconstruir a economia, pode ficar sob diferentes supervisões. A do Estado. Confiaremos na sobriedade dos dados a registar e na fidelidade à sua originária finalidade? Ou a do cidadão que pode introduzir dados sobre si, nomeadamente clínicos. Confiaremos na sua fiabilidade e na pureza das intenções? E confiaremos a disponibilização de dados pessoais num mundo quotidianamente violado por hackers? Ou em que a Apple e a Google, de reputação turva quanto à utilização de dados dos cidadãos, estão a ajudar os governos a melhorar as apps já criadas? E quem não tem telemóvel, como a maioria dos idosos? Fica em casa! De castigo.

As interrogações, dúvidas e desconfianças sobre a nossa rastreabilidade digital são muitas. Compreendemos que seria muito útil para controlar a pandemia e é-nos apresentada como moeda de troca para sair do confinamento, que a todos asfixia, e reactivar a economia, de que todos dependemos. As razões utilitárias são ponderosas e reconhecemo-las como benéficas; mas as preocupações éticas são inalienáveis e evidenciam-se como pertinentes. E assim que se inicie a utilização da nova app comandada pelas autoridades nacionais perder-se-á a inocência. Hoje é a pandemia, amanhã poderá ser o terrorismo ou qualquer outra ameaça global e qualquer nova utilização, por uma nova razão, será sempre mais fácil do que a primeira, até não haver razão nenhuma.

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