Superior: se a prática faz a excelência, o que fará a falta dela?

Quero crer que todos estamos cientes que a componente prática é crucial a uma formação superior de excelência, e é exatamente pela sua qualidade que os nossos profissionais também são reconhecidos internacionalmente. Haja vontade. Não se acabe, antes reative-se o ensino prático, e já! Pois se a prática faz a excelência, o que fará a falta dela?

Nestes tempos de pandemia, desde pelo menos 10 de março, as Instituições de Ensino Superior (IES) implementaram uma série de medidas de contenção que implicaram a interrupção das atividades presenciais com estudantes, substituídas por ensino à distância, bem como a interrupção de todas as atividades de investigação consideradas não essenciais. Medidas acertadas e justificadas enquanto as incertezas sobre o vírus SARS-CoV-2 não permitissem atuar de outro modo.

Dada a evolução da pandemia da covid-19 e do comportamento da população, bem como do conhecimento sobre o comportamento do vírus, apesar das incertezas ainda existentes, começa-se a planear, e a executar, o levantamento progressivo das medidas de contenção, salvaguardando a saúde da população humana e de modo a regressar a um tempo mais parecido com a normalidade. No caso do Ensino Superior, no dia 17 de abril o gabinete do ministro Manuel Heitor emite uma nota onde solicita a elaboração de planos para levantamento progressivo das medidas de contenção atualmente existentes. Sugere-se a reativação faseada de atividades letivas e não letivas com presença de estudantes, estimulando não só a continuação da adoção de processos de ensino e aprendizagem à distância e de teletrabalho, mas promovendo, sempre que possível, a sua combinação gradual e efetiva com atividades presenciais, designadamente destinadas a aulas práticas, laboratoriais e avaliação final. Orientações genéricas, que terão que ser concretizadas em cada IES, consoante a natureza das formações ministradas e os constrangimentos infraestruturais de cada uma.

Não obstante, parece pairar no ar uma certa resistência em reativar o ensino prático, laboratorial ou de campo, por parte de muitas (mas aparentemente não de todas) IES. São emitidas diretrizes internas que reiteram as medidas iniciais de contenção, entre elas a continuidade da atividade letiva à distância, pelo menos até ao final deste ano letivo, chegando ao cúmulo de afirmar que isso é consistente com as recomendações ministeriais.

Ora, tudo parece indicar que o SARS-CoV-2 irá andar por aí independentemente das estações do ano, pelo que ao contrário dos vírus sazonais não será suscetível a variações térmicas. Ou seja, até ao desenvolvimento de uma vacina, que vai demorar entre uns otimistas quatro a seis meses a uns mais realistas 12 a 18 meses, e à sua produção em massa e consequente disponibilização, teremos todos que aprender a conviver com o SARS-Cov-2. De facto, depois do “martelo” (agir rápida e agressivamente, durante semanas, não meses), vamos ter que nos habituar a “dançar” com o mesmo, durante meses, até que seja viabilizada e disponibilizada uma vacina, eficaz e segura.

Ora, caros colegas, agora na pele de dirigentes das IES, que insistem em não retomar as atividades práticas, laboratoriais e de campo, nas várias licenciaturas e mestrados onde essa formação é essencial para a preparação dos nossos jovens, futuros quadros, técnicos, cientistas, dirigentes deste país; será que vão continuar a insistir no “martelo” do ensino à distância, independentemente das circunstâncias? O ensino prático não é essencial e deixou de ser importante? Ou, sendo a componente mais cara e diferenciadora do ensino universitário de excelência, a opção é tomada por motivos orçamentais?

O argumento de que os laboratórios são pequenos e que há dificuldades infraestruturais não me parece que colha, pois por motivos de saúde pública com certeza que as turmas poderão ser divididas em grupos, por exemplo com um máximo de dez alunos e um docente por laboratório/sessão prática. Vejamos: é sabido que o setor primário da nossa economia nunca deixou de trabalhar, mesmo em estado de emergência. Assim sendo, qual a justificação de os alunos de licenciaturas ou mestrados ligados ao setor primário, ciências agrárias, agronomia, engenharia agronómica, florestal, zootécnica ou agro-pecuária, enfermagem veterinária, equinicultura, zootecnia ou veterinária (entre outras), não retomarem as suas práticas e estágios? E os estudantes de cursos como biologia ou química (ambos nas suas diferentes declinações), biotecnologia, bioquímica, ciências biomédicas, ecologia, ciências do mar, e mesmo os de enfermagem e, em pelo menos algumas unidades curriculares, de medicina, vão perder entre um a três semestres de ensino prático, correspondente a 17% -50% do total da sua formação universitária? Isto no melhor cenário, pois os motivos para manter o ensino exclusivamente à distância vão, muito provavelmente, manter-se no início dos próximos semestres letivos, até à existência de uma vacina.

Se o tecido económico vai, sempre que possível, estar em atividade durante o mês de agosto, por que motivo não se prevê um plano A, B, C, os que forem necessários, para que o ensino prático já perdido, mais aquele que se vai perder com os períodos inerentes à “dança com o vírus”, não seja ministrado ou antecipado em tempo, planeando atividades práticas entre 15 de julho e 15 de setembro? É porque não se pensou nisso ou é porque assim fica mais barato? É porque é bem mais cómodo não assumir qualquer risco? Que diríamos se os nossos profissionais de saúde, desde o assistente técnico que trata da limpeza até aos enfermeiros e médicos, adotassem uma atitude similar de conforto egoísta e se recusassem, por exemplo, a trabalhar horas extra ou a integrar equipas de emergência? Ou é porque, afinal, o ensino prático, laboratorial e de campo, não é tão importante? Se a prática não é necessária, então acabe-se com ela, e já.

Quero crer que aceitamos correr riscos, calculados e assumidos numa postura científica, que estamos cientes que esta é uma situação que se vai prolongar nos próximos 12 a 18 meses, que não somos comodamente egoístas e que pensamos na qualidade da formação dos nossos estudantes. Todos estamos cientes que a componente prática é crucial a uma formação superior de excelência, e é exatamente pela sua qualidade que os nossos profissionais também são reconhecidos internacionalmente. Urge reativar a componente prática. No respeito, obviamente, pelas condições de segurança e saúde de todos os envolvidos, proporcionando as instituições os meios necessários para que tal se concretize. Haja vontade. Não se acabe, antes reative-se o ensino prático, e já! Pois se a prática faz a excelência, o que fará a falta dela?

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