Cientistas portugueses perguntam: é a covid-19 aquilo por que a acção climática esperava?

Entre o conhecimento adquirido e a “utopia” que desejam, quatro investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa indicam três passos para que o caminho depois da pandemia seja mais amigo do ambiente

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Apesar de os protestos de rua terem parado, a resistência da acção climática tem de continuar, defendem os especialistas Nuno Ferreira Santos

A pergunta é provocatória e isso é propositado. Num artigo publicado na plataforma online Zenodo (e que ainda não foi revisto pelos pares), quatro investigadores da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa perguntam, em forma de título: “Acção climática: é o coronavírus aquilo por que estávamos à espera? (E agora?)”. As respostas, entre um misto do conhecimento disponível e “a utopia” dos próprios autores, apontam para que pode ser. Mas há limites difíceis de ultrapassar.

A resposta final vai depender de como evoluir um conjunto de factores e Pedro Macedo, um dos autores do artigo, é claro: “Uma das coisas que assumimos é a grande incerteza que existe em relação a como se vai sair de tudo isto.” Porque o que está a acontecer era inimaginável há três meses e todas as previsões dos activistas do clima mudaram tão depressa como o modo de vida dos cidadãos. 

No início de 2020, os mais optimistas acreditavam que este seria o ano em que a acção climática, respaldada pela contestação da sociedade civil e alguns avanços políticos, iria avançar. Mas, a crise sanitária retirou a emergência climática da agenda, ao mesmo tempo que trazia consigo a concretização dos “sonhos mais loucos” dos activistas, como a quase paragem total do tráfego aéreo. “Ironicamente, de alguma maneira, o novo vírus fez recuar a acção climática ao mesmo tempo que provocava uma mitigação climática vasta e sem precedentes”, sintetizam Pedro Macedo, Filipe Duarte Santos, Jiesper Tristan Pedersen e Gil Penha-Lopes no artigo comum. “Há muitas vozes a pedir que aproveitemos esta situação para revermos a forma como relançamos a economia e este artigo tem muito que ver com tentar contribuir para que essa discussão aconteça. É uma forma de tentar fazer sentido de tudo o que está a acontecer e de mudanças que podemos esperar na acção climática”, diz Pedro Macedo.

Os investigadores olham para o futuro próximo, propondo três passos essenciais para mudar o caminho que o mundo vinha a trilhar, criando “um novo normal”. O primeiro é básico: há que fazer os possíveis para ficar em segurança e sobreviver à pandemia. E, durante este período, resistir. “Há uma grande necessidade de não voltarmos ao mesmo, como aconteceu noutras crises, e o que vemos são maus sinais, como o discurso de que vamos injectar dinheiro e salvar as companhias aéreas”, justifica o investigador. 

O segundo passo ou “onda”, como referem no artigo, é aquele que, esperam, irá permitir que as soluções locais e comunitárias sejam aceites. “Os países estão a ter um papel grande a controlar o que acontece e vai ser injectado muito dinheiro, mas os recursos são finitos e, com os países depauperados, tudo o que são propostas da sociedade civil vão ganhar um novo espaço para se manifestarem”, defende Pedro Macedo.

É daqui que poderá vir a “mudança de paradigma” que os autores desejam. “Este medo e esta sensação de fragilidade do nosso sistema, que já era vivido por muita gente ligada às alterações climáticas, estão muito mais espalhados na sociedade. As pessoas perceberam que há uma fragilidade neste sistema de andarmos todos a correr de um lado para o outro. E que se calhar é importante, por exemplo, terem um papel mais forte na produção dos seus próprios alimentos. Temos pessoas a esgotar sementes nas lojas. Eu próprio tinha uma horta há nove anos, que retomei agora com toda a força”, diz.

O último passo - aquele em que “entra a nossa utopia”, reconhece o autor - será o que chegar na fase de acalmia. É aí que esperam que “seja possível uma reflexão mais profunda e se crie uma nova abordagem de governança a nível global, baseada no reconhecimento dos limites do planeta, numa nova cultura de regeneração dos ecossistemas e das relações a nível social, com uma economia que sirva tudo isto e que não seja tudo o resto a servir a economia”, sintetiza o investigador. 

 O grande problema, e um dos factores da incerteza assumida, é que as mudanças, nomeadamente da retoma da economia, vão surgir rapidamente, numa altura em que a calma necessária para pensar novos caminhos não existe ainda. “Infelizmente, temos de reconhecer que esta oportunidade é muito limitada. Para haver mudanças deste tipo é preciso haver um sistema democrático a funcionar normalmente e o que temos agora é o poder político extremamente concentrado em resolver a crise de saúde, sem conseguir ouvir os apelos que estão a surgir em relação à acção climática.”

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