Equívocos em tempo de pandemia

Atrevo-me a renovar o apelo para uma campanha profissional, verdadeira e responsável, com uma mensagem forte que reforce estas medidas de comportamento individual e social adequados, ainda mais necessário e urgente quanto o cansaço e a solidão potenciam incumprimento.

1. A Arte da Política não é um equívoco Em Política, anunciar a intenção de uma medida é desencadear o começo da sua concretização. É um princípio basilar que obriga que as decisões sejam muito bem fundamentadas, que estejam reunidos todos os requisitos previsíveis para o seu sucesso incluindo a previsão das contingências e imponderáveis, sempre possíveis na acção humana. Mesmo quando se pretende uma intervenção disruptiva.

Foi observação pertinente dum amigo já falecido que cito, personalidade de grande inteligência, lucidez e honestidade intelectual, durante passeios inesquecíveis nos parques londrinos num tempo longínquo que ainda perdura na memória.

A Prudência que vem da reflexão e da humildade intelectual é uma virtude ao serviço da República e um requisito para o bom governo.

Não terá sido isenta de reflexão a observação cautelosa feita no início do terço final do período de emergência, de que já se via luz ao fundo do túnel, equilíbrio difícil entre a gestão das expectativas da população e a realidade dos factos.

De facto, o país vive um estado de suspensão prolongado, estará naturalmente cansado do confinamento obrigatório, do encerramento dos locais públicos, da mudança súbita e drástica na vida quotidiana, da limitação de prerrogativas individuais e preocupado com as consequências da travagem súbita da economia, desemprego, perda de rendimentos etc.

Noutra perspectiva, os resultados divulgados sugerem que, não se tendo ainda vencido a pandemia, se caminha na boa direcção, com redução da taxa de crescimento de doentes, controle do número de internamentos e necessidade de ocupação de cuidados intensivos, maior número de testes de diagnóstico e mais doentes recuperados.

Mas há sempre imponderáveis nas acções humanas. Houve abrandamento imediato do confinamento, ainda por cima com sol primaveril, sem que o uso generalizado dos meios de protecção individual como as máscaras estivesse formalmente instituído – ou porque não as há ainda disponíveis, ou porque as autoridades sanitárias terão dúvidas sobre o seu real benefício! 

As pessoas, individualmente e em grupo, facilitaram. Foram frequentes os passeantes sem respeito pelo distanciamento social, desportistas para quem ainda não se tinha ainda divulgado com suficiente intensidade que as regras de etiqueta desportiva são mais exigentes em termos de distanciamento e uso de máscara. Só ontem as televisões falaram num estudo de duas universidades, uma belga e outra holandesa, que faziam recomendações muito claras para os joggers (passeantes e/ou corredores amadores) manterem 5 metros de separação entre cada um e para os ciclistas 20 metros, e para todos, uso imprescindível de máscaras.

No meu caminho para o hospital, vi muitos passeando, correndo e pedalando em Monsanto, como sempre, lado a lado e sem máscaras. E as razões para mais estas limitações são claras: o aumento da amplitude e frequência dos movimentos respiratórios potencia a dispersão aérea do vírus mesmo para quem seja portador assintomático, pois não deixa de ser um contagiante potencial.

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Foz do Porto, 19 de Abril: as pessoas, individualmente e em grupo, facilitaram Paulo Pimenta

Os desportistas profissionais, pelo contrário, têm dado um exemplo notável de treino em casa e cumprimento das regras estabelecidas.

A preocupação com a estagnação da Economia é real e vai obrigar a decisões corajosas para o alívio das restrições actuais.

E, nesse sentido, atrevo-me a renovar o apelo para uma campanha profissional, verdadeira e responsável, com uma mensagem forte que reforce estas medidas de comportamento individual e social adequados, ainda mais necessário e urgente quanto o cansaço e a solidão potenciam incumprimento.

Por favor, poupem governantes, altos funcionários, directores gerais, deputados, toda a burocracia do Estado – a sua presença diária e obsessiva em todas as estações de comunicação corre o risco de ser cansativa e contraproducente!

Apelo à imaginação e espírito de serviço público dos nossos produtores de conteúdos mediáticos e figuras públicas conhecidas, que gravem spots curtos, dinâmicos onde se relembrem todas estas regras de comportamento que devem ser escrupulosamente cumpridas, para que a nova fase de retoma de actividade seja um sucesso e não se potencie o risco, sempre presente, de novo surto da doença.

Um colega de curso mandou-me um curto vídeo explicativo da razão para o uso das máscaras, um desenho animado brilhante, intuitivo e que poderia ser utilizado para sensibilizar a população. Recomendei que o propusesse a quem de direito, o que terá sido feito, mas sem eco...

2. Um outro equívoco é o programa das comemorações do 25 de Abril. Ninguém da esquerda à direita do espectro político porá em causa o significado da data e a sua identificação com o regime democrático e com a recuperação da Liberdade em Portugal.

Sejamos claros: todos nós, cidadãos, democráticos e respeitadores da ordem vigente, acreditamos que o Parlamento é o Coração da Democracia e o estado de emergência não suspendeu a sua prática.

Mas daí a apoiar a realização duma sessão pública com convidados institucionais, mesmo que pensando assegurar-se distanciamento social, vai uma distância intransponível e um equívoco inesperado. Serão que irão todos usar máscaras, como se recomenda para os passeios ao ar livre ou para a prática religiosa? Qual seria o impacto? E que comentários tal facto iria suscitar?

As razões do desacordo com a iniciativa são claras. A primeira, porque é um mau exemplo, dado em pleno período de vigência do confinamento pessoal, de sobranceria perante a Lei, assinalando a existência de um grupo de cidadãos privilegiados isentos do seu cumprimento rigoroso das normas em vigor no estado de emergência que eles próprios aprovaram. Sejamos claros: é uma situação diferente da actividade de rotina do Parlamento e das suas comissões a funcionar com um número reduzido de deputados, mas desempenhando uma acção que se pretende seja exercício de afirmação de vitalidade democrática e de escrutínio do Poder Executivo.

Por favor, meditem no exemplo e na simbologia fortíssima que foi a oração solitária pela Humanidade feita pelo Papa em 27/3, numa Praça de S. Pedro vazia, na Via Sacra de sexta-feira santa e na missa de Domingo de Páscoa, onde, dispersas na basílica de S. Pedro, não estariam mais de 30 pessoas no templo. Não tenho nenhuma dúvida que teve maior impacto nos crentes e não-crentes que todo o cerimonial habitual. Foi exemplar e ficou na memória universal!

O mesmo se aplicaria a uma cerimónia oficial, sem convidados, na qual o chefe do Estado e o presidente da Assembleia da República se dirigissem ao país neste momento difícil que vivemos.

A segunda razão, tem a ver com os idosos ou velhos, nomenclatura abrangente para os cidadãos com mais de 70 anos – e voltaremos ao tema – cuja protecção tanta preocupação tem suscitado. Alguns são figuras nacionais, respeitados pela sua actuação em defesa da Liberdade, pelo seu carácter e pela coragem que manifestaram há 46 anos. Mas porquê obrigá-los a não cumprir as regras gerais, pensadas também para a protecção deste grupo etário mais vulnerável, e incluí-los nesta cerimónia pública submetendo-os a um risco potencial de contaminação?

E o embaraço para o Corpo Diplomático? Será que os seus países irão aceitar este risco adicional para os seus representantes ou por precaução não foram convidados, reduzindo assim a cerimónia à dimensão paroquial?

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Parlamento, 25 de Abril de 2019: este ano, a cerimónia repete-se Daniel Rocha

E, finalmente, uma outra razão que um ilustre académico e amigo mencionou no seu Facebook: porquê celebrar nestas circunstâncias e no século XXI ignorando toda a panóplia tecnológica disponível, para recorrer a costumes do século passado?

Ontem, ouvi escritor e jornalista reputado, informar que comemorações políticas públicas de datas de grande simbolismo nacional e mundial tinham sido suspensas na Alemanha e na Rússia.

Apoio, pois, todos os que fizeram um apelo a que se reconsiderasse esta decisão que, infelizmente, se tornou num equívoco infeliz!

3. Pandemia e experimentação social? Realidade ou equívoco? Obviamente, não subscrevo as teorias da conspiração que pululam sempre em épocas de incerteza. Mas a História ensina-nos que este tipo de acontecimentos desencadeiam ou aceleram um conjunto de transformações sociais, algumas verdadeiramente disruptivas. Y. N. Harari mencionou claramente esse impacto num ensaio já citado e amplamente divulgado, do qual um aspecto mais significativo será o sacrifício de liberdades fundamentais em prol da segurança dos cidadãos, pela implementação de sistemas altamente intrusivos de mapeamento individual dos doentes e seus contactos.

E o medo, natural perante a ignorância, é um instrumento poderoso para potenciar essa transformação, o qual é subtilmente promovido e ampliado em comentários e escritos bem-intencionados.

Entre o reforço da vocação totalitária dos Estados potenciada pelos sistemas de vigilância individual, seja por geolocalização a partir dos telemóveis ou por sistemas mais sofisticados de reconhecimento facial, e a mobilização da inteligência colectiva mediante o apelo a uma cidadania informada e exigente, temo que a opção se opte pelo mais fácil que é o recurso à tecnologia intrusiva, solução que as grandes centrais de recolha de informação não hesitarão em estimular e potenciar. Já se imaginou o perigo que representará a posse de tamanha informação, ainda que seja prometido horizonte temporal limitado para a sua aplicação, destruição imediata após o fim da pandemia e controle público? Quem acreditará nessas promessas? O Financial Times publicou uma análise extensa e interessante sobre o assunto e o risco potencial para a sociedade aberta e democrática.

Isso tudo e os famosos certificados de imunidade, de obtenção rápida e custo tentador, que os seus promotores designaram por passaporte imunitário, um visto para a Liberdade, para o acesso ao trabalho e para a reinserção social. Como em sociedades totalitárias que bem conhecemos ou recordamos, os certificados de bom comportamento social e político ou de inscrição no partido, para prevenção da infecção da colectividade pelas ideias subversivas de Liberdade e Democracia!

Qual será a dimensão do impacto na nossa Sociedade e nas Liberdades que são o alicerce da nossa vivência colectiva se tal medida for implementada?

Outra coisa é o seu uso científico para a compreensão da doença e da resposta do hospedeiro e para protecção daqueles que têm que lidar directamente com os doentes.

É claro que a modificação anunciada nas relações interpessoais, nas demonstrações de afecto e amizade, na convivência social, tem, também, toda a configuração duma gigantesca experimentação social. Para não falar no que poderá ser o enorme impacto na reconfiguração do sistema económico, no combate à poluição do planeta e utilização mais judiciosa dos recursos naturais.

Por enquanto, o foco está nos idosos, que todos mencionam sem caracterizar, entre desdém e complacência e para os quais invocam o dever de protecção, o que poderá implicar o seu confinamento por largo tempo. Mesmo que a solidão os destrua. Quem serão estes velhos? Todos os maiores de 70 anos? Incluindo os saudáveis, porque também há gente saudável nesses grupos etários mais avançados e a idade não é uma doença?

Este desvelo preocupa-me. Porque é hipócrita. Até agora ninguém veio assumir responsabilidade pela indiferença com que se ignoraram as condições de tantas residências sanitárias e de repouso, para aqueles já sem autonomia física ou mental e sem família. Esse foi o grande problema, cá e na Europa. E ninguém assumiu compromisso público para promover o cumprimento de medidas administrativas, impor requisitos estruturais, promover os meios adequados para melhorar as condições de vida e reduzir riscos sanitários neste grupo. Espero que seja feito.

Os espanhóis usam uma linguagem mais simpática falam em nuestros mayores, mas isolar os mayores, encerrá-los numa redoma de solidão e tristeza, será a solução mais fácil, mas não será seguramente acto de Humanidade. Tem que haver outras soluções!

É que uma Sociedade também se distingue pela forma como cuida e protege os seus cidadãos, sem discriminação de idade, raça, condição ou estatuto.

E uma distinção fundamental que se ensina logo no início aos futuros médicos: a diferença entre a idade real e a idade aparente, ou mais objectivamente entre a idade cronológica e a idade biológica.

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