A epidemia dos investigadores desempregados

Não somos mais nem menos do que ninguém, não aspiramos a nenhum tratamento especial, a algum favor ou a qualquer espécie de privilégio – limitamo-nos a exigir os mesmos direitos que, cada vez menos, assistem aos restantes trabalhadores.

Vivemos tempos excepcionais e confrontamo-nos com emergências extraordinárias todos os dias. Antevemos, com base nas opções políticas, económicas e sociais que o Governo tem adoptado consecutivamente, uma crise de dimensões e de impactos mais devastadores do que a crise capitalista de 2008. É já evidente, por um lado, que a panaceia da solidariedade europeia vai redundar, uma vez mais, na culpabilização e na punição fiscal e económica dos países do Sul e, nesses, dos trabalhadores e dos mais pobres. Por outro lado, no plano interno, é também já claro que o Governo não hesitará na hora de escolher os que salvará e os que fará, uma vez mais, pagar uma crise pela qual não são responsáveis – optando por salvar a banca e os grandes grupos económicos. Por sua vez, os rendimentos, os direitos e a capacidade de intervenção dos sindicatos e das comissões de trabalhadores, última barreira de defesa contra os frequentes abusos, ilegalidades e desmandos de uma parte significativa do patronato, foram já subtraídos aos trabalhadores.

Assim, é inquestionável que ao Governo se coloca um desafio crucial: o de se colocar ao lado das pessoas e das suas necessidades e aspirações, ou o de optar pelas imposições da Comissão Europeia, da banca e do patronato. É inegável que a urgência da resposta médica ao surto pandémico é a prioridade nesta fase e não passa apenas pelos trabalhadores da saúde, mas também por todos aqueles que asseguram a produção de bens essenciais, a sua distribuição e a sua venda nas superfícies comerciais; aqueles que, sem protecção, baixíssimos salários e sem qualquer tipo de atenção mediática, recolhem diariamente o lixo das ruas, impedindo o aparecimento de novos surtos epidémicos; aqueles que continuam a garantir que os medicamentos, as refeições, os cuidados de saúde básicos chegam à população idosa; etc., etc., etc.. Ninguém põe esta prioridade em causa. Contudo, ao Governo exige-se que, simultaneamente, encontre soluções rápidas e eficientes para que à epidemia de saúde não se siga uma de miséria, de fome e de morte.

Por mais negro que o cenário pareça, o Governo deve, já que se fez munir de um Estado de Emergência desnecessário e inédito na vigência da nossa Constituição, mobilizar todos os meios e recursos e pô-los ao serviço de todos aqueles que em Portugal vivem e trabalham. As crises pandémica e económica têm de servir para o país se repensar. Nomeadamente, no caso em apreço, no que concerne ao seu sistema científico. Não descurando que, certamente, existem sectores de actividade cuja situação exige uma resposta mais imediata, a ciência exige-a também.

Senão, vejamos, num sistema científico e tecnológico nacional (STCN), essencialmente assente no financiamento através de bolsas de investigação científica ao abrigo do Estatuto do Bolseiro de Investigação (EBI), ninguém, uma vez terminada a bolsa, tem direito a subsídio de desemprego ou a qualquer prestação social. Num SCTN subfinanciado, em que os projectos não abundam e em que os principais concursos se destinam a financiamento por curtos períodos de tempo, os investigadores estavam já condenados a, sem rendimento, procurarem formas de garantir um nível mínimo de subsistência nos períodos mais ou menos prolongados em que se encontravam entre bolsas ou entre projectos.

A “redescoberta” da importância da ciência que por estes dias orgulha o Governo e a tutela só pode desembocar naquilo que os trabalhadores científicos têm há anos vindo a reivindicar: a reformulação do SCTN,  aumentando, consideravelmente, o seu financiamento; não o fazendo depender quase exclusivamente dos quadros de apoio da União Europeia; dando oportunidades àqueles que para ele querem trabalhar, num reforço importante do número de recursos humanos; e, sobretudo, contratando os investigadores, não os condenando a uma vida de incerteza, de ansiedade e de longos períodos sem qualquer rendimento ou apoio social, e evitando situações de verdadeira emergência social como a que hoje enfrentam centenas ou milhares de investigadores. Essa é uma discussão que devia, desde já, ser encetada. Porque a covid-19 não suspendeu a vida e porque o Estado de Emergência não suspendeu a democracia.

Mas, no imediato, acorra-se também àqueles que, tendo tido bolsas ou tendo estado em projectos de investigação e/ou sendo candidatos a concursos de âmbito nacional ou a projectos de nível local, se vêem sem qualquer rendimento. Falamos de todos aqueles que, noutras circunstâncias, procurariam – por falta de subsídio de desemprego ou de qualquer tipo de apoio por parte do Estado – compensar o orçamento lançando-se ao trabalho na restauração, no comércio, nos serviços, no sector do turismo, etc. Hoje não têm sequer essa possibilidade. Dos que, trabalhando à peça e por baixíssimos valores, se dedicariam, em regime de prestação de serviços, a transcrever entrevistas e a traduzir artigos, por exemplo, para ganharem alguma coisa – os centros de investigação estão parados, os trabalhos dos investigadores estão congelados, também daí não virá qualquer tipo de resposta à necessidade dos investigadores desempregados ou entre bolsas. Falamos de todos aqueles que tendo, por exemplo, terminado as suas bolsas de doutoramento em Agosto, Setembro ou Outubro de 2019, e tendo entregue as suas teses para avaliação nessa mesma altura, tiveram de esperar, devido à morosidade burocrática das universidades, até Janeiro, Fevereiro ou Março de 2020 para poderem prestar as provas de defesa e, assim, obterem os títulos académicos necessários à participação em novos concursos — sem contar com os que ainda aguardam essa defesa, sem bolsa, claro. Falamos de todos aqueles que viram congelada a abertura de concursos de centros de investigação ou de projectos já desenhados e prestes a começar. Congelados sem uma data de retoma previsível, se a houver depois de tudo isto. Falamos de muitos outros – centenas ou milhares? – que não têm hoje rendimento, que têm contas para pagar, que podem ou não ter filhos para alimentar...

Neste sentido, a título excepcional e tendo em vista uma reformulação efectiva do SCTN, exige-se que o Governo arranje, agora, já, uma solução para os investigadores desempregados. Devendo partir de verbas do Orçamento do Estado, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) ou da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), o Governo deve criar uma plataforma em que estes investigadores se possam inscrever e reportar a sua situação. Esse será o primeiro passo para, desde logo, ser possível identificar o número de investigadores desempregados neste momento, a razão dessa circunstância e a sua duração. Numa segunda ordem de importância, e tendo, sobretudo, em vista a reflexão, presente e futura, acerca do SNTC, permitirá compreender os impactos que o sistema de bolsas e projectos de curta duração têm nos trabalhadores científicos.

Assim, neste momento, que é de agudas necessidades sentidas em todos os sectores da vida social e económica e em que as verbas disponíveis dificilmente permitirão acorrer a todos os problemas, é também urgente ter em atenção a situação dos cientistas que se encontram sem quaisquer rendimentos. Tendo a convicção de que são muitos os sectores profissionais e as pessoas às quais é preciso acorrer neste momento e nos tempos que se avizinham, o que os investigadores desempregados ou entre bolsas exigem do Estado é que não permita que estes continuem na circunstância de abandono social e de ausência de rendimentos absoluta em que se encontram. Assim, e não estando a reivindicar nada a que não tenhamos direito ou que não tenhamos trabalhado para garantir, é prioritário, creio, assegurar o direito ao subsídio de desemprego a todos os investigadores que tenham terminado os seus contratos ou as suas bolsas em 2019 e em 2020, garantindo assim o acesso a quem, embora tenha entregue a sua tese nos últimos quatro ou cinco meses de 2019, só a conseguiu defender no início de 2020, não fique excluído desta urgente prestação social. É, sublinho, fundamental que se compreenda que aquilo que os bolseiros agora exigem, não é uma novidade. Sempre nos temos batido pelo fim do regime de bolsas e pela contratação dos investigadores. A situação em que hoje milhares de nós nos encontramos, e em que aqueles que terminam brevemente as suas bolsas e contratos também se encontrarão, devem-se àquela que tem sido a política seguida, nas últimas décadas, relativamente à ciência em Portugal e ao seu subfinanciamento. Não somos mais nem menos do que ninguém, não aspiramos a nenhum tratamento especial, a algum favor ou a qualquer espécie de privilégio – limitamo-nos a exigir os mesmos direitos que, cada vez menos, assistem aos restantes trabalhadores. Somos nós que fazemos a ciência neste país, não podemos atravessar aquela que é já uma das maiores crises que o país enfrentou na sua história sozinhos e sem rendimentos.

Não chega dizer que estamos todos no mesmo barco, não é verdade que o vírus nos afecte a todos de forma igual, não é tolerável que sejam os mesmos de sempre a pagar as crises e não é aceitável que a ciência (que só o é porque há quem a faça) seja, uma vez mais, sacrificada.

As opiniões veiculadas neste artigo são da responsabilidade do autor e não reflectem necessariamente a opinião da ABIC

Sugerir correcção