Europa do euro – salto qualitativo ou fragmentação?

A União Europeia está perante uma encruzilhada e as escolhas vão determinar o seu futuro. Se persistir em se afastar dos princípios de cooperação e de solidariedade que estiveram na sua origem, vai alargar de forma irremediável o fosso entre as economias devedoras e as credoras.

1. O movimento que conduziu à União Europeia foi lançado por uma elite de políticos e de intelectuais marcados pelos conflitos sangrentos que, na primeira metade do século XX, dilaceraram e enfraqueceram económica e militarmente a Europa. Procuravam reunir as três mais importantes potências europeias – Reino Unido, França e Alemanha – em torno de uma plataforma institucional e jurídica capaz de induzir paz e cooperação onde ao longo da história da Europa havia predominado tensão política, económica e mesmo religiosa.

Desde o início que este projecto teve avanços e recuos, reflexo da heterogeneidade – económica, social, cultural, política e religiosa – dos povos europeus envolvidos. Realidade bem entendida por Jean Monnet – para muitos, Pai Fundador da Comunidade Económica Europeia –, que afirmou que (…) “a Europa seria forjada por crises e seria a soma das soluções encontradas para lhes responder”.

A ser assim – e foi assim desde o Tratado de Roma de 1957 que lançou o projecto de unificação da Europa –, porque é que a crise actual há-de ser diferente? Porque é que – sem uma resposta global e solidária adequada – esta crise pode vir a resultar no enfraquecimento, na fragmentação e mesmo na desagregação da União Europeia? Devido à natureza desta crise e ao seu impacto sobre uma zona euro enfraquecida pela crise de 2007/2008, como veremos nos pontos seguintes.

2. Trata-se, como sabemos, de uma crise transversal a nível planetário que originou um choque exógeno simétrico sem precedentes sobre as economias da área do euro.

Economias que, embora “amarradas” por uma moeda comum, não têm, no entanto, a mesma capacidade individual para lhe responder – a Alemanha aprovou um programa de garantias do Estado de apoio ao financiamento da economia, no âmbito da resposta à crise, que é cerca de três vezes superior ao português, em percentagem do PIB.

Neste contexto, uma resposta global assimétrica – mais robusta e eficaz por parte das economias credoras –, tanto na contenção da pandemia, como no relançamento da actividade económica, terá consequências de grande complexidade e risco: numa perspectiva económica, alargará o fosso entre os dois grupos de economias – devedoras e credoras – agravando a fragmentação da zona euro; de um ponto de vista político, irá fortalecer os grupos e movimentos populistas e anti-europeus, com consequências que podem vir a bloquear ou mesmo a destruir o próprio projecto europeu.

Consequências agravadas pela dimensão humana desta crise e pelas dificuldades que as economias mais endividadas irão inevitavelmente enfrentar no pós-pandemia.

Compreendemos a importância central desta questão se tivermos presente que a resposta à crise tem de ser dada em dois momentos: num primeiro momento, têm de ser mobilizados recursos para financiar o combate directo à pandemia, para estabilizar o mercado de trabalho e para evitar a destruição do tecido produtivo – em particular os negócios individuais, familiares e de pequena e média dimensão; num segundo momento, apoiar o relançamento da actividade económica e o crescimento, única via para absorver de forma sustentada os trabalhadores em lay-off e no desemprego.

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Mural numa parede de Londres, Abril de 2020 REUTERS/Hannah McKay

No entanto, a questão central não é apenas o volume de recursos que é necessário mobilizar para responder à crise, mas igualmente a sua origem e os instrumentos utilizados para o seu financiamento. Se uma economia com um nível excessivo de endividamento é forçada a recorrer a nova dívida – mesmo que em condições favoráveis de prazo e de juro –, vai agravar o peso da sua dívida global, aumentar a sua dependência e sobretudo estreitar ainda mais a sua capacidade para, no pós-pandemia, apoiar o relançamento da actividade económica.

3. Até agora, a resposta da União Europeia à crise processou-se no âmbito do quadro institucional e jurídico/regulamentar que emergiu do combate à crise financeira de 2007/2008 – de acordo com a solução proposta pela Alemanha.

O BCE estabilizou os mercados de capitais e bancários do euro, assegurando a sua liquidez e procurando favorecer a concessão de crédito por parte dos bancos; a Comissão “suspendeu” a aplicação das regras orçamentais – por quanto tempo? – e propôs a adopção de um esquema de apoio – até ao limite de € 100bn – ao desemprego; o Banco Europeu de Investimentos (BEI) viu aumentada a sua capacidade de concessão de crédito; por último, cada economia pode obter junto do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) fundos até 2% do PIB para cobrir custos directos e indirectos do combate ao vírus.

A decisão do BCE de intensificar as injecções de liquidez nos mercados do euro através da aquisição de dívida tem múltiplas implicações que, pela sua importância, importa ter presente: estabiliza e protege as condições de financiamento das economias que se debatem com níveis elevados de endividamento, evitando que o impacto da pandemia possa ser agravado por uma crise financeira; assegura condições de liquidez – em volume e em preço – favoráveis ao aumento do financiamento da actividade económica; para além disso, oferece aos governos uma janela temporal para que ponham de pé programas de relançamento do crescimento nas economias do euro.

No entanto, a acção do BCE leva a colocar uma questão crucial. Durante quanto tempo vai poder continuar a acumular no seu balanço dívida das economias mais endividadas?

Quanto ao acordo do Eurogrupo, subavalia grosseiramente o custo do combate à pandemia e empurra as economias devedoras para nova dívida, com todas as implicações negativas referidas atrás.

4. Os riscos da situação actual estão claramente reflectidos nas declarações dos principais protagonistas – Comissão, França e Alemanha –, que procuram mitigar as reacções provocadas pela inadequada resposta do Eurogrupo virando-se agora para a aprovação de um programa de relançamento económico da União Europeia.

A Comissão, alinhada com a Alemanha, parece favorecer um reforço da capacidade de intervenção por via orçamental, enquanto a França propõe a criação de um Fundo especial e temporário, destinado a apoiar o relançamento económico no pós-pandemia.

Há que conhecer a dimensão e o alcance dos programas, os instrumentos que vão suportar o seu financiamento e o seu impacto potencial sobre as diferentes economias, antes de proceder à sua avaliação. A questão central permanece em aberto: a mobilização dos recursos necessários para financiar tais programas vai ser suportada por algum tipo de mecanismo de partilha/mutualização do risco ou não? Seja ou não sob a forma de eurobonds.

A União Europeia está perante uma encruzilhada e as escolhas vão determinar o seu futuro. Se persistir em se afastar dos princípios de cooperação e de solidariedade que estiveram na sua origem, vai alargar de forma irremediável o fosso entre as economias devedoras e as credoras. Nestas circunstâncias, seria cada vez mais difícil manter a estabilidade e a coesão da zona euro na sua configuração actual. A ser assim, duvido que o custo final – económico, social e político – possa ser mutualizado.

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