June Almeida, a história da primeira pessoa a ver um coronavírus em humanos

A virologista June Almeida observou em amostras de fluidos nasais de humanos um vírus semelhante aos vírus influenza, mas não exactamente igual. Era um coronavírus.

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Novo coronavírus SARS-CoV-2, um dos coronavírus em humanos NIAD

Muitas pessoas poderão nunca ter ouvido falar de June Almeida (1930-2007), mas esta virologista escocesa foi pioneira em métodos de imagem para vírus e foi a primeira pessoa a ver um coronavírus em humanos ao microscópio. Numa altura em que vivemos uma pandemia causada por um coronavírus, a sua história tem ficado cada vez mais conhecida depois de um divulgador de ciência ter decidido contá-la no jornal irlandês The Irish Times e ter sido entrevistado pela BBC.

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June Almeida DR

June Hart nasceu em Glasgow em 1930. Era boa aluna, mas teve de abandonar os estudos porque não tinha dinheiro para ir para a universidade. “Ao deixar a escola em 1947, June tornou-se uma técnica de laboratório em histopatologia na Enfermaria Real de Glasgow com um salário de 25 xelins por semana”, conta a sua filha Joyce Almeida, num obituário publicado na revista médica BMJ.

Mais tarde, arranja trabalho no Hospital de São Bartolomeu, em Londres, para trabalhar na mesma área. Por essa altura, casa-se com o artista venezuelano Enriques Almeida e passa a chamar-se June Almeida.

Acabam por emigrar para o Canadá, onde se torna técnica de microscopia electrónica no Instituto do Cancro de Ontário, em Toronto. Mesmo sem qualificações universitárias destaca-se e assina com cientistas vários artigos científicos, sendo a maioria relacionada com estruturas de vírus. “No Canadá, ganha reconhecimento científico com mais facilidade do que no Reino Unido sem qualquer diploma universitário”, escreve Joyce Almeida.

Em 1964, volta a Londres para trabalhar na escola de medicina do Hospital St. Thomas a convite do professor A. P. Waterson. Três anos depois, os dois mudam-se para a Escola Médica Real de Pós-graduação em Londres. Pelas suas publicações científicas, obtém o grau de doutora honorária.

Colabora ainda com o virologista David Tyrrell, director de uma antiga unidade de investigação sobre a constipação do Conselho Britânico de Investigação Médica. Além de investigarem vírus da constipação, também identificavam outros vírus, nomeadamente coronavírus, que eram uma nova causa de infecção respiratória. Foi assim que detectaram o primeiro coronavírus em humanos, o B814. O divulgador de ciência George Winter conta a história desta descoberta no The Irish Times, depois na BBC e agora acrescentou alguns pormenores ao PÚBLICO. 

Das más imagens a um novo vírus

No início dos anos 60, a equipa de David Tyrrell infectou voluntários humanos com amostras de fluidos nasais de rapazes de um colégio em Surrey, no Sudeste de Inglaterra. Devido aos seus sintomas, todos teriam constipações comuns. Viu-se que um dos agentes patogénicos das amostras recolhidas não crescia em culturas celulares, mas demonstrou-se que crescia em culturas de órgãos derivados da traqueia. Em 1965, coube então a June Almeida observar essas amostras, denominadas B814, através de microscopia electrónica.

“Não tínhamos muita esperança, mas sentíamos que valia a pena tentar”, escreveu David Tyrrell no livro Cold Wars: The Fight Against the Common Cold (2002), em que conta a história desta descoberta. Ao analisar as amostras no microscópio electrónico, June Almeida “viu partículas de vírus nos espécimes de B814! June descreveu-os como sendo semelhantes aos vírus influenza, mas não exactamente iguais”, relembrou o virologista.

“Ela não isolou o vírus [que ficou a chamar-se B814], mas foi a primeira a vê-lo ao microscópio electrónico”, assinala o divulgador de ciência. George Winter diz ainda que June Almeida já tinha visto estas partículas antes enquanto investigava a hepatite em ratinhos e a bronquite infecciosa de galinhas, mas que o artigo científico foi rejeitado porque “ela tinha produzido apenas más imagens de partículas do vírus influenza”, justificou a publicações que o recusou.

Quanto ao nome, David Tyrrell, June Almeida e A. P. Waterson comentaram que este vírus tinha uma espécie de auréola à sua volta e, através de um dicionário, viram que o equivalente em latim seria corona (coroa). Assim surgiu o nome de coronavírus, conta George Winter. O isolamento do vírus foi logo divulgado na revista British Medical Journal em 1965. Esse trabalho foi assinado por David Tyrrell e outros cientistas e ainda não por June Almeida. Só dois anos depois, David Tyrrell e June Almeida assinaram em conjunto um artigo científico na revista Journal of General Virology em que falavam deste coronavírus em humanos e divulgavam imagens.

Num artigo de revisão de 1994 publicado na revista Reviews in Medical Virology assinado por S. H. Myint (do Departamento de Virologia Clínica da Escola de Medicina da Universidade de Leicester, em Inglaterra) referia-se precisamente que a “estirpe B814 foi o primeiro coronavírus em humanos a ser isolado, mas que se perdeu em laboratório antes de ter sido completamente caracterizado”.

Originalidade e técnica

Mas os feitos de June Almeida não ficaram por aqui. A virologista foi a primeira a visualizar o vírus da rubéola, apesar de este já ter sido reconhecido como uma causa de malformações congénitas caso fosse contraído durante a gravidez. Usou a mesma técnica em que foi pioneira – e que era uma variação da microscopia electrónica –, para estudar outros vírus, como o vírus da hepatite B, em que acabou por observar que tinha duas componentes distintas (uma na superfície da partícula e outra internamente). A sua técnica acabou por ter influência também no trabalho de outros cientistas. 

June Almeida terminou a sua carreira no Laboratório de Investigação Wellcome (em Londres), onde trabalhou no desenvolvimento de ensaios de diagnóstico e vacinas. Reformou-se em 1985 e tornou-se professora de ioga. Mas, não conseguindo deixar a sua experiência científica de lado, no final dos anos 80 foi conselheira no Hospital St. Thomas.

“O sucesso de June resultava da combinação entre a originalidade de pensamento – procurava e encontrava explicações simples para o que pareciam ser problemas complexos – e o conhecimento técnico ao usar uma economia de reagentes”, refere Joyce Almeida. “Qualquer discussão com June, independentemente do tamanho do grupo, não era só estimulante como também cheia de diversão: ela tinha um sentido de humor intenso e, ocasionalmente, perverso.”  

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