Covid-19: fadistas e guitarristas em silêncio, casas de fado fechadas, triste sina para todos

A precariedade laboral dos artistas, a forte dependência do turismo das casas de fado, deixa muitos sem “qualquer rendimento”, como diz o fadista António Rocha, que canta há mais de 60 anos. “Nunca se assistiu a algo assim”. Muitas casas com equipas firmadas optaram pelo lay-off.

Foto
Um poema de José Luís Gordo no Senhor Vinho, a casa de fados de Maria da Fé ENRIC VIVES-RUBIO / PUBLICO

A precariedade laboral dos intérpretes do fado, cantores e instrumentistas, que marca a sua relação com as casas de fado, e a dependência do turismo desta expressão expõem a fragilidade do sector, de acordo com empresários e artistas.

“A retoma vai ser dura”, disseram à agência Lusa, quando interrogados sobre o futuro, após a paralisação imposta pelo combate à pandemia da covid-19. Para os protagonistas desta expressão, património da humanidade, a resposta maioritária é: "A ver vamos. Tudo isto é uma incógnita”.

Enquanto a maioria das casas de fado recorreu ao “lay-off”, que não é aplicável a todos os artistas, maioritariamente contratados a recibos verdes, a Câmara Municipal de Lisboa projecta apoiar uns e outros, através de um programa.

Na situação de “lay-off” estão, entre outras casas, A Parreirinha d'Alfama, Senhor Vinho, Fado Em Si, Páteo d'Alfama, Real Fado, Arcadas d’ O Faia e o grupo Fado and Food, que detém quatro casas, entre as quais O Luso, no Bairro Alto.

Pedro Ramos, d' O Faia, sublinhou que não pode perder a equipa de 25 pessoas já formadas. “É muito complicado procurar pessoas com este nível de exigência profissional”, disse à Lusa. “A maioria das casas de fado tem um quadro de pessoal desta grandeza, e algumas até mais”. Pedro Ramos afirmou que o sector “estava numa boa fase”, mas que a retoma “só começará a sério em Março do próximo ano”.

A opinião é partilhada por outros empresários como o guitarrista Paulo Valentim, da histórica A Parreirinha d"Alfama, e o poeta José Luís Gordo, d’ O Senhor Vinho, na Lapa. “Vamos tentar recorrer aos apoios da banca para manter a casa, com prejuízos, até ao final do ano, esperando que, dependo do evoluir da situação do coronavírus, possa timidamente surgir algum turismo e, a partir de Março [de 2021], temos de acreditar numa retoma”, disse Pedro Ramos.

Paulo Valentim, por seu turno, afirmou que “as contas estão equilibradas, mas resta ver o tempo que demora a recuperação - seguramente só dentro de um ano”.

Para a maioria, o futuro “é uma incógnita e há que esperar para ver”, como disse José Luís Gordo, referindo que “é difícil traçar uma projecção, quando está em causa a saúde das pessoas e tem de se recuperar a confiança”. “Não depende directamente de ninguém. A situação do coronavírus é uma variante que não entrou nos cálculos”, disse o poeta, autor de “Cantarei até que a voz me doa”.

O fadista António Rocha, que canta há mais de 60 anos, já distinguido com um Prémio Amália, disse à Lusa, que “nunca se assistiu a algo assim, uma paragem total. Resta ver como se vai recuperar”. António Rocha cantou ao longo da carreira em várias casas de fado e, actualmente, faz parte do elenco d' O Faia, ao lado de Anita Guerreiro, Ricardo Ribeiro, Milene Candeias e Lenita Gentil.

“Muitos fadistas estão literalmente sem qualquer rendimento, pois muitos são precários, não havendo casas de fado abertas. Não cantam, e logo não ganham”, disse a Associação Portuguesa dos Amigos do Fado (APAF).

A fadista Luísa Rocha é um dos exemplos. À Lusa afirmou estar a pensar em encontrar outro meio de subsistência, além do fado. “Estas situações de dificuldade geram oportunidades também. Para mim cantar fado é uma condição de que não abdico, mas, se calhar, devo pensar em encontrar outro meio de rendimento”, disse Luísa Rocha, já com dois álbuns editados.

“No meu caso, somos dois, pois eu o meu marido [Guilherme Banza], que é guitarrista, trabalhamos na mesma casa de fados e estamos os dois parados”. Luísa Rocha habitualmente canta no Fado em Si. A fadista projecta gravar um “disco ao vivo” na casa de fados, uma tarefa que “implica mais pessoas, como sonoplasta e produtor”.

Elsa Laboreiro, do elenco d’ O Luso, em lay-off desde 14 de Março, salientou “que esta profissão inclui muitas outras, e essas pessoas estão também sem auferir nada”. Laboreiro referia-se a técnicos e a pessoal da produção, entre outros. O Luso pertence ao Grupo Fado and Food, que inclui ainda Adega Machado, O Tímpanas e Clube de Fado.

O sócio-gerente deste grupo João Pedro Ferreira Borges disse à Lusa: “Numa primeira fase, tomámos a decisão de encerrar dois estabelecimentos, mantendo outros dois a funcionar, Adega Machado e Clube de Fado. A preocupação principal foi proteger a saúde dos nossos funcionários”.

“Numa segunda fase, próximo da declaração de estado de emergência, seguimos as recomendações da Direcção-Geral da Saúde e da Organização Mundial de Saúde e decidiu-se encerrar os estabelecimentos”.

Para este grupo, terem “ficado sem fonte de receitas de um momento para o outro suscita grande preocupação ao nível financeiro”, mas estão a “procurar dar resposta adequada no sentido da sustentabilidade”, garantiu.

Sobre o futuro, Pedro Guerra disse: “Estamos apreensivos quando será possível uma retoma económica, e de que forma, na medida em que este é um sector muito dependente do turismo, que necessita de confiança para recuperar”.

Pedro Guerra gere um grupo com quatro casas em Lisboa, duas em Alfama (Fado em Si e Páteo d"Alfama), uma na Ajuda (Real Fado), e outra na rua do Salitre, Sal de Estar. Ultrapassada a actual situação, este empresário disse à Lusa que projecta reabrir apenas as duas casas em Alfama, de forma alternada, ficando, por enquanto, encerradas as outras duas.

Sem colocar em risco a qualidade e “mantendo todos os artistas”, Pedro Guerra conta vir a trabalhar com uma equipa mais reduzida. “Talvez se consiga, em Julho, começar a vislumbrar uma solução”, disse Guerra. “Este ano está perdido”, sentenciou. Para o empresário, só em Março de 2021 se poderá vislumbrar “o início da recuperação”.

Carlos Silva, das casas Maria Mouraria e Tasca do Faísca, disse à Lusa que a “retoma tem de ser com cautela” e as suas casas vão reiniciar “só com serviço de refeições e, depois, vai-se vendo e pensando em voltar a ouvir-se fado”.

Para Ferreira Borges, “a incerteza é geral quanto ao momento em que será possível retomar a actividade comercial”. “Quando chegar esse momento, importa acautelar e reforçar as medidas de higiene e segurança, e possivelmente, também em função da recuperação do mercado [procura], que se prevê lenta, reabrir parcial e gradualmente as nossas unidades, também quanto às respectivas capacidades”, adiantou.

A Fado and Food mobiliza 102 trabalhadores e aposta no “maior valor patrimonial” das suas casas de fado, “os muitos anos de existência”. “Não temos dúvidas de que, apesar das previsíveis dificuldades no contexto macro económico e nacional, tudo será ponderado no sentido de que sobrevivam e prossigam em consonância com a sua missão”, disse, esperançosamente.

Todos os empresários desejam “mais apoios” do Estado e realçam o papel “único e característico” das casas de fado na indústria turística. “Ninguém vem de facto a Lisboa sem ir uma noite aos fados, e nós somos um cartaz da cultura e língua portuguesas”, salientou Paulo Valentim.

“Este é um sector frágil, muito dependente das conjunturas económicas e políticas, mas essencial na oferta turística nacional”, salienta a APAF, lembrando que, “além da classe artística, há um quadro [mais amplo] de trabalhadores com formação, que vêem os seus rendimentos diminuídos”.

Sugerir correcção